sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Adam, o Livro

ADAMAutor: José Adal Pereira de SouzaDescobrir quem sou, de onde vim e para onde vou é importante demais para mim, e nesta procura posso até perder a vida.Numa noite miserável de chuva ininterrupta, negra como carvão e por instantes iluminada por relâmpagos, entrecortada pelo uivo das rajadas de vento nas árvores e pelo estalo do trovão, homens cheios de ódio procuram pessoas entre as árvores sedentos de os matar, sem que por um momento se abrande o rancor que enche seus corações. Os perseguidos eram 13 homens e outras tantas mulheres e crianças. A escuridão, fechada como o fundo de uma caverna, ajuda aos que são caçados, mas também os impede de ver para onde estão indo e tropeçando e caindo ficam rodeando o mesmo lugar sem terem nada que os oriente. Uma menina crescida acompanhando o pai que carrega uma criança menor nos braços e puxando a irmã pela mão fica tão transida de medo que pára, incapaz de dar mais um passo, o medo paralisante lhe tirando até o ar. Um cão as encontra e logo outro e mais outro que as cercam latindo furiosos enquanto seu pai se afasta gritando o seu nome. Ela cai de joelhos e sente a dor dilacerante de uma mordida no braço, a carne sendo rasgada e o osso quebrando. Protege seu rosto com o outro bracinho enquanto dentro de sua mente passam cenas de sua casa, dela ainda pequena brincando no quintal, da mãe fiando lã para fazer a linha macia que vai se transformar em tecido para suas vestes, o pai chegando do trabalho no campo há tardinha e ela correndo para seu colo, os irmãozinhos nascendo um a um enquanto sua mãe gritava de dor dentro de casa e ela com o pai do lado de fora aguardando assustada sem entender por que a mãe estava sofrendo tanto se ia ganhar um novo filhinho tão bonito... Aí sente uma pancada forte na cabeça, tão forte como se fosse a deusa Sinn que grande e cheia tivesse caído bem em cima dela. E tudo se acaba para aquela criaturinha que não deixou nenhum traço de sua vida entre nós.Á frente dela, mais para a direita, uma mulher foge entre os arbustos puxando dois filhos pela mão e com o coração tomado por duas emoções intensas: medo e ansiedade. Corre topando em raízes de árvores, sendo arranhada nos arbustos e tropeçando em buracos do terreno. Cega pela escuridão, desatinada, só uma parte de sua mente está lúcida e esta clama incessantemente por seu Deus. “Pai de todos os seres, Criador do céu e da terra, com seu poder nos proteja”. Esse apelo racional, mais da mente que do coração, vai cedendo com a corrida, com as crianças caindo a todo o instante e com o pouco fôlego que não consegue encher seus pulmões. Então, de sua boca sai um grito de pavor tão opresso quanto o salto de um gato, que preso numa armadilha pula louco de medo quando o caçador abre a porta sem cuidado. Ao mesmo tempo ela grita palavras que aprendeu desde menina e que tentou substituir por uma nova crença mais racional e moderna: “Minha deusa, me ajude e aos meus meninos! Me proteja minha Mãe!” A cultura que é ensinada geração após geração impregna de tal forma cada fibra de nossa mente que qualquer nova doutrina quando provada no fogo da agonia provocada por um grande perigo é suplantada pelas antigas crenças que já se pensava ter ultrapassado. Ela clama por seus antigos deuses que tinha abandonado por um Deus único e Criador de tudo. Mas não houve nenhuma ajuda e tudo desmorona rapidamente. Seu filho cai de novo, ela pára e o levanta gritando para que corra, sabe que assim assusta ainda mais a criança, mas o que pensa e o que faz são coisas diferentes. O esforço é em vão, não dá mais tempo. As vozes dos perseguidores escondidos no breu daquela noite infernal estão a alguns passos deles. Ela e as crianças correm sem falar mais nada, mas eles as perseguem como os demônios da noite que têm olhos que enxergam no negrume. Um de seus filhos é arrancado de sua mão e o estanque faz ela se virar para o outro lado e cair embolada com o menino. Ela se vira colocando-o debaixo dela e cobre a cabeça com os braços, mas não tem tempo de pensar nada. Porretes batem em suas costas e seus ossos se partem como os gravetos que ela quebrava em casa para botar no fogo e a última imagem dessa vida é do fogo crepitando e dançando sobre as brasas.Tudo o que levou a esta mortandade começou na cidade de Nineveh, bem ao norte do vale da Mesopotâmia, no 5º século a.C, mais precisamente no ano de 4026, e envolvia uma questão religiosa. O povo que habitava toda aquela região era o sumério – os arqueólogos os chamam mais precisamente de pré-eufratianos. Como todos os humanos sua procupação com a sobrevivência se misturava fortemente com crenças em um mundo invisível, uma terra de deuses. O universo para aqueles nossos distantes parentes era chamado de An-Ki ou “o céu e a terra”; você já deve ter lido essa expressão, ela aparece nas primeiras palavras da Bíblia: “No princípio Deus criou o céu e a terra”. Eles compreendiam a Terra como um disco chato e o céu como um vazio delimitado por uma abóbada de metal – eles chamavam a liga de estanho que já fabricavam de “metal-do-céu” pois pensavam que o campo celeste fosse feito deste material – onde ficam os luzeiros: o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas. Preenchendo o espaço entre o céu e a terra existe o lil, o vento, ou melhor traduzindo, o espírito. Em volta desta campânula descomunal está o oceano de onde tudo saiu. Seu deus mais importante era a Lua, Sinn, irmã do Sol, Shamasha, e de Vênus, Isthar. Com essa cosmogonia como base eles foram aprendendo com os astros, os luzeiros, como ordenar sua vida, executar seu trabalho e planejar seu futuro. Pelo movimento dos astros dividiram o dia em 12 partes duplas, ou 24 horas e ordenaram sua agricultura dividindo o período em que o Sol viaja pelo céu em 12 meses e 4 estações. Programaram sua vida dividindo os luzeiros do céu em 12 campos, cada qual governado pela sua constelação principal – as constelações eram grupamentos de estrelas que lhes lembravam figuras como o touro, os peixes, o escorpião, etc. Os meses eram governados pela Lua e por ela a vida se multiplicava e desenvolvia: tanto provocando os ciclos menstruais nas mulheres, quanto o tempo de gestação de novas criaturas, fossem humanas ou animais. Sempre que ela aparecia no horizonte, depois de ter ficado invisível (nova), começava um mês; o ano era lunar. A agricultura também era influenciada por ela: a época de arar a terra, o momento certo de plantar cada tipo de vegetal e a época da colheita. Nestas ocasiões haviam festas e comemorações que enchiam os corações daquelas pessoas de alegria e esperança. Assim, a religião permeava cada faceta da vida daqueles seres humanos antigos e os tornava diferentes dos animais.Não demorou muito para que homens sensíveis tomassem para si a responsabilidade pelos rituais que faziam o contato entre os humanos e os seres poderosos, os deuses. Surgiu a classe dos sacerdotes, pessoas que tinham mentes argutas e que estudavam Matemática e Astrologia, dominavam as artes, como a de escrever e pintar, e conheciam a Medicina. Sob a supervisão deles e para eles foram construídos templos que mais tarde ganharam a forma de pirâmide com escadas, os Zigurates. Eram responsáveis por manter a vida das criaturas em sua comunidade correndo em paz, com alegria e saúde e deste modo sendo sempre produtiva. E quando as boas condições degeneravam em enchentes, epidemias, brigas domésticas ou conflitos entre clãs ou cidades eram eles que cuidavam para que tudo retornasse ao normal. Com seu empenho garantiam a sobrevivência e o desenvolvimento do gênero humano.Porém, nesta época, no início do 4º milênio a.C, um jovem sacerdote teve o insight de que aqueles deuses eram só alguns dos luzeiros do céu e que havia um único Deus que não se pode ver e que criou tudo: o oceano primordial, o céu e a terra, e todos os seres vivos e plantas nela. Esse Deus não era apenas o maior entre os deuses, era o único. Não se devia pedir proteção a Sinn, Shamasha ou Isthar, pois eles eram apenas luzeiros do céu; todas as preces deviam ser dirigidas ao Pai de todos. Sua pregação atraiu alguns discípulos, pessoas tão decididas que a nova mensagem começou a ser levada para outras cidades mais ao sul, até o vale do rio Jordão, e a cidade de Jericó. Não eram muitos os que acreditavam num único Deus. A idéia contrariava não só a antiga tradição como os interesses dos líderes e governantes. Quando um novo conquistador usurpava a autoridade de um governante antigo era importante apresentar aos súditos um novo deus mais de acordo com o caráter do novo chefe e que se incorporava à plêiade dos antigos deuses. Também não era aconselhável uma cidade venerar o mesmo deus de outra. Cada uma precisava ter sua legião de potestades para enfatizar a inigualável capacidade daquele clã sobre os outros. Por tudo isso o monoteísmo não era popular. Além disso esta nova filosofia carregava no bojo um compromisso pela paz entre os homens de todas as tribos e povos e a idéia de todos trabalharem juntos por um só objetivo. Era revolucionário e seu idealizador, o jovem sacerdote de Nineveh, começou a incomodar seus colegas da região e preocupar seus superiores que moravam mais a sul, em Babel. Aquele momento histórico não era propenso a união e sim a diversidade de ideais e idéias. Eram muito pouco os humanos que compartilhavam da compreensão de um mundo criado e governado por um único Deus e que fosse pacífico e unido. Eles não eram bem vistos pelos responsáveis pela organização religiosa que se formou em Babel e se espalhou pelo vale, desceu para Canaã e subiu para as montanhas que formavam o séqüito do monte Ararat.Para piorar as coisas aquelas boas novas coincidiram com uma febre que matava os pacientes com violentas dores e com uma furunculose no gado bovino que causou prejuízos e a falência de várias famílias de Nineveh. Os sacerdotes imediatamente mandaram mensageiros ao sul acusando o novo pregador de estar atraindo a ira dos deuses e causando tanto mal a comunidade que devia ser banido dela. Do sumo-sacerdote em Babel veio a ordem para ele abandonar sua seita monoteístas e seus ensinamentos sobre um só Deus. Porém, como ele insistisse em organizar cultos ao novo Deus, os sacerdotes de Babel disseram que as antigas divindades decidiram que era imprescindível que ele fosse morto junto com todos os que o seguiam e deram a ordem para a matança.
Naquela tarde os monoteístas estavam reunidos orando para seu Deus quando seu lugar de adoração foi invadido por grupos armados de lanças, porretes, boleadeiras com pedra, facas e facões e eles começaram a ser mortos sem piedade. Alguns lograram fugir para fora da cidade. Um temporal violento desabou como para esconder os fugitivos, mas o ardor religioso junto com interesses políticos e pecuniários fez os caçadores continuarem a caçar aqueles poucos adoradores do Deus único até que a noite caiu. Espalhados entre as árvores e encharcados pela chuva fria que não parava eles fugiam e se escondiam dos seus perseguidores. Alguns dos adoradores dos deuses usavam cães e assim encontravam os fugitivos que eram impreterivelmente abatidos. O principal dos monoteístas, o jovem sacerdote, já não ouvia as súplicas de seus seguidores nem escutava, com horror, seus gritos desesperados quando eram encontrados e assassinados. Dividido entre encorajá-los e salvar a própria vida ele continuava para frente.- Pai, por que não nos auxiliastes? Que provação é essa? Será que O desagradamos? Conhecemos tão pouco sobre o Senhor! (com o coração disparado e os ouvidos atentos ele não descansava e continuava correndo) Tantos mortos: Waab, eu ouvi gritando ao ser morto; Gead suplicava que a deixassem viva e aos dois filhos pequenos, e Lewed que abjurou sua fé clamando por Sinn, a deusa Lua, também não foi ouvido por seus carrascos. (ele parou quando ouviu vozes à sua direita) Meu Deus, se for de Vossa vontade eu aceito a morte e espero ser levado a Vossa presença.
Redobrou sua corrida apesar das pernas parecerem uma papa de aveia, tão moles e sem força estavam. Cambaleando feito um bêbado e se arrastando apoiado em cada arvoredo só pensava agora em escapar. Uma dor lancinante o fazia apertar o lado direito da barriga e a secura na garganta não conseguia ser mitigada pela água que escorria de sua cabeça, lhe empapava a barba negra e ele chupava. Mas além deste sofrimento físico um outro lhe afligia a alma e ele rezou sem palavras audíveis, só em seu coração, como um salmo de aflição:
Como uma maçã podre em meio a um caixote de maçãs
Assim eu me pareço e deste modo me sinto.
Ao invés de louvar a meu Deus em primeiro lugar
No meu orgulho quiz reformar o mundo,
Mudar as coisas que já existiam há muito tempo
E que os homens faziam por consentimento do Senhor Deus.
Deste modo só trouxe sofrimento e dor, perda de vidas
E a ira deste arranjo de coisas que dirige o mundo.
Peço, meu Pai, que o Senhor que é todo misericórdia e luz
Tenha compaixão deste teu servo ignorante
E na sua magnanimidade me conceda forças para suportar
Tudo o que me sobrevirá pelo mal que causei aos meus irmãos.
E que eu te louve para sempre porque só o Senhor é bom
Só nosso criador nunca falha e é sempre o mesmo.
Então, seus perseguidores surgiram de todos os lados, ele recebeu um golpe terrível na cabeça e mais outro, e tudo se apagou para ele.Há uma coisa estranha envolvendo os nossos antepassados distantes. O livro À Procura de Adão, de Herbert Wendt, assim fala desse espaço de tempo (p 391): “Falha-nos a imaginação para fazer uma idéia do espaço de tempo em que teve lugar esse acontecimento, o maior, mais maravilhoso e mais importante da história da Terra. Para isso devemos recorrer a comparações. Se, como soem fazer os paleontologistas, reduzirmos o período de tempo que decorreu da aparição dos antropóides terciários até ao presente a um dia de vinte e quatro horas, obteremos os seguintes números: a fase de humanização desde a evolução do porte ereto até a utilização do fogo levou mais de quatrocentas a seiscentas gerações. Isso equivale de 12 a 20 milhões de anos ou 12 a 20 horas. Pelas 5h da manhã apareceram os pro cônsules semi-eretos. Levou 17 horas para que deles resultassem os semi-homens de Taungs e Swartkrans utilizadores de armas. Meia hora depois, pelas 22h 30m, entrou em cena o Adão de Robinson, o telantropo, e, meia hora depois, o Prometeu conhecedor do fogo. Pelas 23h 30m, apareceram os proto-homens de Trinil, Pequim e Heidelberg, pelas 23h 45m, os homens de Steinheim e Swanscombe, pelas 23h 50m, os homens de Neandertal, pelas 23h 55m, as raças de Crô-Magnon e Aurignac e, pelas 23h 59m, as raças humanas européias atuais. Nossa civilização equivale, assim, na duração total da humanização, a um minuto num dia de vinte e quatro horas. Seres humanóides aprenderam pouco a pouco, com uma lentidão interminável a princípio, depois cada vez mais depressa”.
O homem com consciência parece ter surgido no período Paleolítico, há 500.000 anos atrás. Restos de fogueiras de acampamentos muito visitados, instrumentos de pedra que revelam um trabalho inteligente para moldá-los e ossos humanos fossilizados em determinados substratos geológicos – camadas da terra que podem ser datadas com relativa precisão – dão aos estudiosos esta conclusão sobre a época em que apareceu o ser humano na Terra. Passaram-se 4.900 séculos e essas criaturas que deixaram sua marca no nosso DNA – tanto os registros de nossa evolução como acontecimentos que quase dizimaram nossa espécie – conseguiram avançar muito pouco intelectualmente. Aprenderam a se comunicar por gestos e sons, domesticaram os animais, aprenderam para que servem as plantas, construíram utensílios de barro e pedra, fabricaram armas, conseguiram produzir o fogo e guardá-lo e inventaram a roda. Não podemos julgá-los, mas é muito pouco em tanto tempo! Em sua defesa podemos dizer que viveram durante a última era do gelo, tempo em que a Terra estava parcialmente coberta por esse elemento o que tornava a vida dura demais. Esses homens e mulheres guardavam fatos importantes de sua vida na memória e cada geração passava para a seguinte os relatos históricos em forma de lendas: o conhecimento das utilidades das plantas como remédio, o domínio de palavras sagradas (mantras) e as técnicas para repetir suas conquistas rudimentares. Entre estes poucos sucessos estava o incipiente trabalho com o barro, como uma estatueta de 11cm encontrada em 1908, na Áustria, próximo a Willendorf e que por isso ganhou o nome de Vênus de Willendorf. Os testes com o método do carbono 14 deram-lhe a idade de 25.000 anos. Deve ter sido modelada por um xamã, um indivíduo sensitivo, e que como seus iguais foram os predecessores dos sacerdotes dos cultos aos deuses. Não há nesta figura de mulher rotunda de vastos seios caídos, barriga proeminente e vulva bem visível nenhuma intenção divinatória, mas somente uma representação de como a reprodução da vida, a árdua luta para manter existindo uma espécie que surgiu no planeta e precisava subsistir, era importante para eles. A figura da mulher prenha era venerada por ser a perpetuadora da vida, a usina de produção dos novos membros dos grupos caçadores. Neste tempo, todas as informações vivenciadas e aprendidas eram guardadas e passadas para as novas gerações pela tradição oral.Então, no período Mesolítico, por volta de 10.000 a.C, as condições geográficas formaram grandes vales irrigados por rios perenes: o Indo, na Índia, o Amarelo, na China, o Nilo, no norte da África, o Jordão, em Canaã e o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia. Suas cheias e vazantes formaram uma terra propícia a germinação de plantas e os antigos aprenderam a plantar, produzindo para suas necessidades diárias e guardando sobras para os dias difíceis do inverno. A vida nômade dos caçadores e coletores de cereais e frutas continuou apenas entre clãs com chefes mais retrógrados, os mais adaptados mudaram seu modo de vida. Este se estabelecer em vilas resultou no surgimento da cerâmica que foi um instrumento espetacular na sobrevivência do ser humano. Agora, sempre tinham comida em casa, a morte os visitava menos, seus filhos cresciam mais fortes, podiam ter animais sob sua guarda, e aprenderam como alimentá-los e utilizar seus serviços. Gado bovino para lhes dar leite, alimento e roupa para se vestir; os eqüinos para levá-los mais depressa ou ajudá-los a puxar coisas além de suas forças; e o cão para guardar o rebanho e auxiliá-los na condução dele para o pasto e de volta para o abrigo e para proteger a casa. Sim, esses humanos, agora, possuíam casa e fixavam a família numa localidade. Multiplicavam-se formando uma vila e várias vilas que tinham parentes comuns formava um clã. O melhor lutador tomava para si o trabalho de orientar o grupo e direcionar seus esforços e de seus animais para projetos comuns, como: rasgar na terra canais para irrigação, preparar terrenos para plantios maiores e fazer grandes construções para uso comum. Ele era o chefe, o predecessor dos reis, e enfeixava em suas mãos o poder de organizar os esforços de seus irmãos e criar os meios de protegê-los.Outra faceta vital em suas vidas, sua relação com as forças superiores, com os deuses, foi ampliada e a adoração organizada por pessoas mais perceptivas, os sacerdotes, que dirigiam o grupo em suas cerimônias. As forças naturais – chuvas intensas ou secas prolongadas – podiam ser domadas, como se domava um cavalo, por se manter uma boa relação com os deuses. Os sacerdotes estudavam o que agradava ou desagradava a esses seres superiores e conduziam o clã num procedimento muito restrito para que ficassem protegidos. As regras de conduta aumentaram em número e suas punições cresceram em intensidade. Esses estudiosos criaram festas e cerimônias para cada momento importante da comunidade: nascimento e morte, início da adolescência e casamento, e o começo do plantio e o fim da colheita. Eram momentos alegres, de festa e companheirismo, que aqueles seres tão esforçados e tão preocupados em se organizar e se proteger necessitavam para poderem continuar progredindo e contribuindo para o crescimento do grupo. Os sacerdotes também estudavam os astros cada noite procurando neles sinais identificadores do que o grupo ou determinado indivíduo devia fazer para ser bem sucedido ou mesmo o que poderia esperar para dias vindouros. Uma mitologia rudimentar formou uma cosmogonia que era primordial na identificação dos humanos: sua colocação no tempo dos eventos, sua localização no espaço e sua relação com outros humanos. O sacerdote precisava ser uma pessoa diversa do chefe tribal, tanto por causa das funções tão diversas que exerciam quanto pelo caráter de cada atividade e que exigia pessoas de personalidade completamente diferentes. Assim, cada comunidade possuía esses dois poderes: o temporal e o espiritual. O conhecimento adquirido nestas duas esferas de autoridade estava se multiplicando muito mas ainda continuava sendo preservado pela tradição oral.No início do período Neolítico, há 5.000 anos atrás, os seres humanos estavam mais preparados para lidar com a terra e as plantas. As sobras das colheitas não só supriam suas necessidades nos dias ruins, mas eram tantas que podiam ser trocadas por utensílios que pessoas mais capazes inventavam, como um arado de madeira que podia ser puxado por um animal e usado para afofar a terra tornando o plantio mais fácil e a germinação dos grãos mais segura. Ou podiam ser trocadas por vestimentas mais bem acabadas do que as feitas em casa: fossem de couro, de lã ou algodão tecido. Homens habilidosos aprenderam a produzir metais com calor da simples fogueira, como o cobre e que podiam ser moldados em ferramentas, utensílios e armas. As pessoas perceberam que um vilarejo que concentrava mais artesãos habilidosos crescia e se tornava mais poderoso que os outros. As cidades foram surgindo e os que viviam nela ou em suas redondezas vestiam-se melhor, tinham casas mais confortáveis, possuíam utensílios mais bem acabados, enfim causavam inveja aos que viviam mais desgarrados. Cada vez mais pessoas vinham para as cidades e elas se multiplicavam. No vale do rio Jordão surgiram: Jericó, Mureybat e Abu Hureyra; no vale dos rios Tigre e Eufrates: Ur, Mosul, Nineveh e Uruk. Havia tantos conhecimentos acumulados que era impossível passá-los todo, pela tradição oral. Assim surgiram as guildas de artífices: os metalúrgicos, os coureiros, os médicos, os construtores e outros. Cada facção de artesãos cuidava de preservar secretamente suas técnicas adquiridas com muito esforço repassando-as para os aprendizes. Mas nesta época os mestres perceberam que as informações eram muitas e precisavam ser guardadas de outra maneira que não pela tradição oral. Então aconteceu o passo decisivo que apressou o desenvolvimento de tudo: os humanos aprenderam a escrever. Agora, o mestre podia deixar registrado o que sabia para que pudesse ser usado por pessoas mais adiante ou para ele mesmo se lembrar do que tinha feito. Os estudiosos dizem que a descoberta da escrita aconteceu perto do ano 3.000 a.C.O sacerdote caído no chão encharcado do bosque viveu mil anos antes disso. Ele não morreu mesmo tendo levado tantas bordoadas no corpo e na cabeça. Se por milagre ou por desígnios do Deus que adorava não se pode saber, mas ficou desacordado dois dias sobrevivendo num limbo benigno que, desligando a maior parte de suas atividades físicas, concentrou toda força potencial curativa de seu organismo no conserto de seu corpo ferido. Quando ele voltou a si, na manhã do terceiro dia, com um sol radioso se filtrando entre a folhagem molhada do sereno, não lembrava quem era ou o que tinha acontecido consigo, nem porquê. Restava uma dor de cabeça avassaladora, uma tonteira horrível, uma secura na boca que mal o deixava respirar e uma fome que fazia doer o estômago quase tanto quanto a dor na cabeça. Um instinto, ou seja lá o que for, levou-o a caminhar na direção contrária aquela onde estavam os seus perseguidores. Achou um riacho e bebeu mais do que deveria, acabou vomitando e se sentindo pior. Ficou ali arriado com a roupa suja de sangue seco, de terra e de mato. Resistente e determinado o jovem de cabelos negros empapados de sangue juntou forças, levantou e caminhou para leste. Precisava descasar a intervalos curtos, sempre acompanhando um riacho e se alimentando de raízes e batatas e esparsos frutos que encontrava. Aquela corrente de água que seguia, muito adiante, desaguou no rio Tigre, bem nos arredores de Mosul, outra cidade, mas ele seguiu subindo em direção a nascente do grande rio e afastando-se da urbe. Não pensava, sua cabeça estava vazia, não recordava nada nem procurava registrar o que quer que fosse. Mas era sustentando pela vontade inconsciente de sobreviver e amparado pela fé em seu Deus. Muito depois, encontrou outro rio que serpenteava no sentido noroeste e o moço terminou por chegar de novo ao Tigre, mas bem acima de sua cidade. Acompanhou o grande rio que ia diminuindo de volume quanto mais subia para as montanhas. Mesmo estando perto da água não tomava banho, os cabelos e as unhas cresciam e ele parecia um espectro para os animais que o avistavam e algum ser humano que o observava de longe. Para aqueles acadianos, desgrenhado e sujo como estava, ele causava um temor inexplicável como se a sua aparência acordasse antiga lembrança, não vivida por eles mesmos, mas por seus antepassados distantes. Recordações embaçadas de seres quase humanos, mas que não falavam e viviam como animais e que conviveram com os homens nos primórdios do mundo. O pavor desses seres era como um tabu, inexplicável, como se os humanos guardasse em si o medo da possibilidade de não termos passado pela mutação que nos deu a condição da razão, consciência e alma e que podia ter impedido o planeta Terra de produzir a raça que viria a dominar o mundo, a raça humana. Assim, o jovem sacerdote vagava solitário e demente, mas no fundo da alma aprendendo com essa experiência que não se pode estar seguro e descansado e que esta vida é uma constante luta em que a honra e a desonra estão separadas por um fio muito fino. Um dia tudo clareou, lembrou-se do sacerdote que era e de sua cidade, de sua crença e das mortes que ela provocou. Neste dia livrou-se das roupas imundas, tomou banho, cortou as melenas e a barba com uma pedra de sílex e limou as unhas. Sentiu-se um homem de novo. Mas as recordações dos amigos perdidos lhe assaltaram tão forte que ele se desligou novamente de tudo. Caminhando meio cego pela beira do riacho caiu num lodaçal de barro pisoteado por muitos animais, afundou e quase sufocou. Levantou, e assim, embarrado dos pés a cabeça, parecendo um boneco esculpido e mal acabado, andou mais um pouco e caiu noutro sono profundo.CAPÍTULO I – SEIS MIL ANOS DEPOIS- Bem, você deu a largada. Agora o livro sai.- E aí, qual é a usa opinião? (pelo janelão do quarto a cor dourada do pôr-do-sol tornava os dois rapazes, os móveis, os livros na estante, e as poucas folhas de papel impresso na mão do jovem gordo, de uma tonalidade de ouro velho).- O que posso dizer? Parece que você foi picado pelo estilo best seller. Começa logo dando porrada, quebrando ossos e derramando sangue.- Olha, Peter, eu tinha que começar a história de algum lugar e achei que devia ser por aí. (Peter é um rapaz claro, muito branco, o que os cabelos alourados e os olhos esverdeados destacam ainda mais; mas seu rosto redondo e a grande barriga lhe dão uma aparência de bebezão).- Estou vendo também que seu livro vai ser do tipo intelectual, cheio de informações arqueológicas. Você sempre teve uma queda por Umberto Eco, mesmo. (quando ele começa a falar desse jeito peremptório é melhor ficar quieto escutando e não retrucar) Lembra quando saiu O Nome da Rosa e você veio babando me mandar ler? Não sei porque você precisa tanto viver enchendo a cabeça de conhecimento. Olha que “o conhecimento enfuna, mas é a caridade que dá sabedoria”.- Só vou colocar informações que ajudem a entender a trama da história. (pego as primeiras páginas do meu livro da mão dele).- Afinal, não te importas mesmo com a opinião dos outros, não é? (ele está reclinado na cama, cotovelo direito espetado no colchão, parecendo um senador romano cínico ou um oficial nazista sádico) Foi você mesmo que me pediu para ler e opinar. (diante do computador coloco as poucas folhas que estão cheias de esperança - como um feto que anseia ver a luz do dia - dentro de uma pasta). Não faça esta cara! Diga-me, o que vai acontecer com o sacerdote revolucionário?- Ele é conhecido por outro nome e já tem uma história que todo mundo conhece.- Não me diga! Então não é uma ficção o que está escrevendo.- Acho que é a recontagem de uma velha história a luz do que a arqueologia vem descobrindo e estou estudando. É uma história instigante.- Tua história acontece 4.000 anos antes de Cristo. Você está sabendo que esta é a época que os tradicionalistas bíblicos – aqueles que tomam as Escrituras ao pé da letra – dizem ter surgido o primeiro homem, Adão. Esta obra vai ter alguma coisa a ver com ele? (estes dias tem feito muito calor e o quarto ainda está quente da tarde inteira em que o Sol bateu bem de frente).- Você é o primeiro a quem estou mostrando meu trabalho. E fiz isto porque quero sua opinião como teólogo. Qual é a interpretação das religiões cristãs sobre a história de Adão e Eva no começo da Bíblia? (Peter se ergue sentando encostado à cabeceira da cama).- Já falei que os tradicionalistas, que acreditam que a Bíblia é a Palavra de Deus, insistem em que tudo aconteceu exatamente como é contado ali. O homem foi criado por Deus literalmente de barro e a mulher, Eva, foi criada da costela dele. Estes religiosos não aceitam as descobertas da arqueologia nem da geologia. Para eles a humanidade surgiu por volta do início do 4º século a.C. e antes disso só havia os animais e as plantas.- Eu sei que muita gente pensa assim mesmo. Mas não consigo entender como é que uma pessoa pode fechar os olhos e os ouvidos a todas as evidências e prefere acreditar num dogma inconsistente. Como pode não acreditar nas cidades desenterradas e nos vasilhames confeccionados por pessoas que viveram há 10 mil anos atrás? - Um momento. Pense um pouco, você trocaria facilmente a idéia que forma sobre um amigo antigo por uma acusação nova, mesmo que fosse muito séria e feita por pessoas idôneas?- Estou entendendo. Custa-se a aceitar uma verdade que desmente tudo em que se acreditava por tantos anos.- É isto aí. Mesmo para a maioria das pessoas das duas últimas gerações – os que nasceram na década de 1950 e na de 1980 – que já cresceram aprendendo na escola sobre a Evolução das espécies e vendo no cinema e na televisão os filmes contando dos primeiros homens surgidos na África e que se espalharam pela Terra, acreditar numa religião, ter uma fé e confiarem nas promessas da vida eterna é indispensável para o equilíbrio mental e para a sanidade. O negócio é complicado, meu amigo. Trocar declarações da velha Bíblia por novidades récem descobertas pelos estudiosos sem religião é impensável para muitas pessoas. Tudo é tão manipulável e as mentiras se parecem tanto com a verdade que muitos têm medo de deixar a tradição pela renovação.- Alguns filósofos dizem que este fenômeno se chama “suspensão da realidade” e é fundamental até para que um filme faça sucesso. Os atores, os técnicos e diretores fazem a coisa parecer tão real que, dentro da sala escura, sentimos medo, a adrenalina sobe e ficamos nervosos como se o que estamos vendo e ouvindo fosse real. E não é. Queremos acreditar naquela história e a realidade em nossa volta é colocada de lado, é ignorada.- Você pegou o espírito da coisa. Agora, deixe-me falar de outras pessoas. Os religiosos que conseguem aceitar a Bíblia como um livro de ensinamentos sábios que contém leis, regras e alegorias para nos ensinar a andar no bom caminho entendem que a história de Adão e Eva é apenas um simbolismo que ensina ser todos os humanos descendentes de uma só linhagem, e por isto devíamos acertas nossas diferenças e viver em paz. Outros, os deístas, vêem nesta história uma afirmação de que toda a evolução foi planejada por um ser espiritual e muito superior a tudo que podemos imaginar, e que o surgimento da vida em nosso planeta seguiu um plano para edificação dos espíritos. Assim, foi Deus, indiretamente, que nos fez. O barro, material que as Escrituras dizem ser com o qual fomos feitos, indica que estamos indelevelmente ligados a este planeta, que somos responsáveis por ele e que precisamos respeitar a ecologia e preservar a vida dos outros seres vivos do planeta, pois afinal tudo é parte de uma frágil cadeia que produziu a vida e a mantêm. Assim, o início da Bíblia ainda tem um valor religioso e literário muito grande. Mexer com estes relatos é se meter com um vespeiro.- E para você mesmo, Adão foi um indivíduo real e histórico?- Acredito que sim.- Por que?- No Novo Testamento, no livro de Lucas, o evangelista apresenta a prova de que Jesus Cristo era o Messias prometido desdobrando os nomes de todos os seus antepassados – está no capítulo 3 – e leva a linhagem até “Adão, filho de Deus”. Ora, se não existiu Adão, então toda a árvore genealógica de Jesus fica desarticulada e a própria existência do Salvador é colocada em dúvida. Não é tão simples assim, mas para se colocar de modo rápido, é isto. Todo a concepção judaico-cristã-islâmica tem por alicerce a história do homem Adão. Mesmo ele tendo coexistido com outros homens é bem possível que 1/3 da humanidade tenha em seu DNA algum traço daquele mesopotâmio, daquele pré-eufratiano, como vocês arqueólogos chamam.- Então você concorda que Adão existiu?- Eu e milhões de pessoas acreditamos que sim. (abandonei a minha posição relaxada sentado na cadeira reclinável e dobrando o corpo para frente, cotovelos apoiados nas pernas, falei).- Eu também, e como sou um arqueólogo queria muito encontrar uma prova real de sua existência.- Isto eu entendo bem. Afinal você recebeu o nome dele, Adam. – ele ficou olhando por cima da minha cabeça por um momento e continuou – Tem outra coisa, quando Paulo, o apóstolo, comparou Jesus a Adão ele chamou a atenção para a percepção dos dois homens, mesmo em épocas tão diferentes, de três conceitos. Primeiro, tinham Deus como um ente real e muito íntimo, como seu Pai. Segundo, que haviam nascido com uma missão determinada que precisassem executar a qualquer custo, mesmo com a vida. Terceiro, um desapego a tudo deste mundo de matéria, uma completa falta da idéia de ter propriedades nesta vida.
- Estes parecem ser os ideais de todos os religiosos.
- Entretanto, ninguém, especialmente Adão, conseguiu manter o foco destes três objetivos, a não ser Jesus, que Paulo chama de último Adão. Então, se em sua história você conseguir destacar a luta daquele homem para vencer o mundo onde estava emprestado e o que o fez perder seu objetivo terá conseguido ajudar muita gente a entender porque erramos tanto.
- As causas do pecado. Somos herdeiros de uma disposição, de um comportamento? Já nascemos com muita dificuldade para viver neste planeta desapegado de tudo que for parte dele?
- Com certeza. Só em nosso ego residir num corpo biológico já torna difícil a gente ser desapegado de tudo o que nos dá prazer físico. A idéia é de que cada ser humano tenha a disposição de Adão, mas com o resultado conseguido pelo segundo Adão, Jesus.
- Peter, eu tenho uma teoria que poderia explicar porque um homem que não foi o primeiro – existiam milhares de criaturas humanas na Terra quando ele nasceu – criou em torno de si a lenda de que foi o primogênito de todos os homens. (ele levantou as sobrancelhas com um ar maroto de quem duvida, mas ainda assim tem um pouquinho de esperança). E é isto que vou contar no meu livro. Adão, um homem entre outros, mas que se exilou de toda a civilização que já havia sido construída e criou para si mesmo um mundo próprio, uma fantasia, que o protegia fisicamente e que mantinha íntegra a sua personalidade duramente atingida.- Todo autor acha que está escrevendo o novo Dom Quixote de La Mancha, o livro definitivo para explicar quem somos, de onde viemos e até qual será o nosso destino.- Há certas convicções na minha cabeça... Não sei como dizer.- Tente, faça uma forcinha. Afinal, se você vai escrever tem que aprender a colocar no papel o que vai no fundo de tua alma, senão não vai valer a pena ler teu livro, nem vai se compreender direito o que você vai colocar nele já que parte da idéia ainda está dentro de você e o leitor não tem como alcançá-la inteira. Então, bote pra fora. (às vezes Peter é irritante, sempre tão confiante e achando que sabe tudo e pior é que também acho que sob aquele cabelo louro espigado há um profundo conhecimento da Bíblia que transparece por trás de tudo o que fala).- Creio que cada indivíduo humano que andou pela Terra não desapareceu completamente e que sua memória precisa ser reverenciada, seus feitos relembrados e de algum modo se incutir nela algum fluido de vida, como quando se pega um livro há muito tempo não lido e se passa uma flanela nele, areja-se suas páginas e se sacode bem suas folhas insuflando energia ao conhecimento guardado dentro dele. (estava olhando pela janela e me voltei para encará-lo e ver a sua reação, seu julgamento a respeito desta idéia).- Beleza! Tem uma passagem da Bíblia que diz ser Deus identificado como "Deus de Abraão, Isaac e Jacó" não porque seja um deus tribal, mas porque para Ele aqueles homens que Lhe dedicaram intensa devoção, ainda estavam vivos.- Não sei se me expressei direito, não estou me referindo a espíritos.- Eu também não! Creio que neste caso, a expressão "eles estão vivos" não tem a ver com espíritos, mas com alguma... (ele, tão falador, procurava uma palavra apropriada) "imagem"... melhor, tomando sua comparação com um livro, penso que neste caso se fala de um arquivo virtual, um conjunto de impressões e informações de um homem ou de uma mulher que sobrevivem ao seu corpo muito depois dele virar pó.- Que seja. Quero prestar uma homenagem a um homem do passado e ao mesmo tempo direcionar um pouco da atenção das pessoas de hoje para seus feitos que de algum modo deixaram marcas na memória da nossa espécie.- É isto aí. Tirava meu chapéu se tivesse um. (levantando-se ele foi saindo do quarto) Eu lhe desejo boa sorte com este livro. Já tem um título? (balancei a cabeça em negação) Deixe-me fazer só uma observação sobre estilo: acho que este romance está parecendo muito um ensaio. São muitos fatos históricos e num romance o que a gente procura é um personagem em quem possamos nos mirar, com o qual nos identificamos. Faça este sacerdote e quem mais conviver com ele tomarem forma, como se saindo do barro e dê-lhes vida, como Deus fez. Bem, a conversa está muito boa, mas tenho muita coisa pra fazer. Tua viagem está perto, vou marcar alguma coisa para fazermos uma despedida bem legal! Não precisa me acompanhar. Volte ao computador que ainda tens muito a escrever.
Mas não fiquei livre dele, metendo a cabeça pela porta falou: - Li teu blog.
- Legal.
- Você continua sendo o mesmo cara que gosta de se arriscar, não é?
- Estamos numa democracia, lembra?
- Então, qualquer um, até os malucos, tem direito de se expressar, só que eles usam um jeito meio brutal para dizer o que sentem. Adianta te mandar er mais cuidado? (balancei a cabeça negativamente) É o que pensei.
Abri a página do meu blog e reli o que escrevi: George W Bush é um bom presidente? Ele é um texano, um homem do Oeste do EUA, e isto tem muitas implicações. Em nossa cultura, porque eu também sou desta região, a propriedade é um bem que precisa ser protegida a todo custo, com violência mesmo. Foi pela força que tomamos as terras de outros homens brancos e isso é diferente do que o pessoal do Leste fez com os índios que não eram bem considerados homens - havia quem achasse que eles não tinham alma ou pelo menos não eram cristãos. E foi com este homem criado com extremo machismo que aconteceu o impensável, o país foi atacado em seu próprio território. Como nossa nação é um império mundial temos sofrido agressões na pessoa de diplomatas e soldados que servem em terras estrangeiras e nem sempre respondemos a elas com violência, na maioria das vezes o fazemos diplomaticamente ou por pressões econômicas já que somos responsáveis por quase um terço das finanças do planeta. Quando sofremos o duro golpe de Pearl Harbor respondemos com extremo vigor entrando na 2ª Guerra Mundial para arrasar os inimigos. Mas foi no governo Bush que o inimigo veio de seu território, criou uma cabeça de ponte dentro do nosso e deu um golpe terrível derrubando o símbolo do sucesso financeiro dos EUA, as Torres Gêmeas. Apesar de minha índole pacífica teria a mesma atitude do presidente e ia caçar o maníaco que ousou nos agredir em sua fétida toca. Este é o Bush que entendo. Porém o homem que quer consertar o mundo invadindo o cotidiano dos outros não reconheço como meu líder, nem o que não se compromete em reverter o saque desenfreado que está sendo feito ao nossa planeta. Apesar de que isto também faz parte de nossa cultura do oeste, saquear tudo o que puder nos dar mais conforto e segurança, já que nossa terra sempre foi hostil e selvagem, dura de se viver. Um republicano com todos os seus defeitos de reacionário, este é G.W.Bush”.Fiquei só e olhando a aquarela de cores no céu do oeste. Adam J Klawisk, este é o meu nome. Nasci em Tucson, Arizona, região desértica e selvagem dos EUA, onde foram filmados clássicos do farwest. Meu pai, Paul Klawisk, é um técnico em eletrônica que a empresa suga fazendo-o trabalhar muito mais que as horas normais na fabricação de equipamentos de primeira geração que são construídos segundo novas teorias desenvolvidas pelos cientistas do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É um homem muito ocupado e toda a minha infância precisei aproveitar cada pouquinho de tempo que ele tinha para mim. Minha mãe é professora de piano, Mary Ann Klawisk e tem boa técnica e algum talento. Sempre gostei de ouvi-la tocar. É, ela sabe tocar Schubert de uma forma muito particular que encanta as platéias leigas que participam dos espetáculos de fim de ano da firma em que seu marido trabalha, e na apresentação de seus alunos que terminam o curso com ela. Mas, se por acaso, esta presente algum casal vindo da sofisticada Califórnia e com algum conhecimento de música clássica, bate palmas com muito mais entusiasmo porque percebem a beleza de sua interpretação. Tenho orgulho de minha mãe.Ela começou a gestar seu filho varão no finzinho de janeiro de 1982 e, em outubro, numa noite em que Paul lia em voz alta para ela um artigo popular que explicava uma conquista da Medicina – a fabricação de anticorpos a partir de células brancas do sangue, leucócitos – ela que bordava uma camisinha para o filho, apertou a barriga e pediu para ir logo pro hospital. Depois de uma correria de carro muito tensa pelas ruas geladas ela estava aquecida e sob a luz branca do quarto em que uma enfermeira grande e negra lhe preparava para o trabalho de parto. O menino não deu muito trabalho para nascer nem teve complicações durante a infância em que quase não via o pai, sempre trabalhando. Mas sua mãe, que diminuiu drasticamente o número de alunos de piano, cuidava dele com desvelo e fazia do menino sua platéia muito especial. Sendo uma mulher religiosa lia comigo a Bíblia e fez nascer em mim uma verdadeira paixão pela história antiga.Algumas semanas depois de fazer 9 anos, logo depois da morte de Fred Mercury – o que deixou minha mãe arrasada, ela sempre colocava “Barcelona” no aparelho de som e cantarolava a música acompanhando ao piano seu ídolo e Monteserat Caballé – meu pai conseguiu tempo para levar-nos ao Monument Valley, formações geológicas de arenito vermelho numa encosta. Formavamos uma família bem bonita: meu pai, alto, de corpo cheio e cabelos escuros bem lisos; minha mãe, com seus cabelos louros ondulados e corpo curvilíneo que os homens olhavam com cobiça; e eu com meu cabelo louro que começava a escurecer, minha roupa do tipo macacão e uma inquietação que me fazia correr de uma coisa para outra, incansável. Foi um passeio maravilhoso, num dia de céu límpido e bem fresco preconizando o inverno que ia chegar. Começamos passando pelas barracas de artesanato indígena e depois subimos percorrendo o caminho dos visitantes e vendo, deslumbrados, as formações geológicas que lembravam formas de animais. Mas fiquei especialmente feliz quando visitamos um protótipo das casas construídas pelos índios navajos com instrumentos rústicos. Conheci seus utensílios e ferramentas, seus móveis toscos e práticos, seu trabalho de tapeçaria e cerâmica. Fazia perguntas a todo instante: “Como é que eles faziam essas moringas de barro?”, e mamãe explicava, “E como é que eles moldavam esta ferramenta de ferro?”, papai respondia. Fiquei fascinado. Assistimos exibições de danças índias, comemos comidas típicas e nos divertimos muito, voltando para casa cansados e satisfeitos.Fui criado bem à vontade. Meus pais me deram muitas atividades. Além da escola e dos deveres tinha natação e tomava aulas de línguas – o espanhol e o polonês, idioma dos ancestrais de meus pais. Mas em três tardes da semana tinha liberdade de andar de bicicleta com colegas vizinhos. Como meu bairro tinha várias ruas que terminavam em pastos e no deserto, fazíamos trilhas formidáveis atravessando por baixo do arame das cercas ou abrindo porteiras com nossas bikes e nos embrenhando por trilhas “sinistras” entre dunas e pedreiras. Certa vez, descobri como a amizade pode ser frágil.Saímos bem depois do almoço e tínhamos ido um bocado distante, quase duas horas de trilha para longe da cidade, e a corrente da minha bicicleta arrebentou. Um de meus colegas, Steve, era um garoto precavido que na bolsa afixada ao quadro levava sempre uma chave de porca e um pequeno aparelho de colocar outro elo na corrente, mas desta vez ele não tinha trazido sua bolsa. Queríamos ir mais adiante, mas com o meu problema começamos a voltar empurrando as bicicletas, contando casos e falando de cinemas e histórias em quadrinho. Talvez por vivermos no Arizona todos nós éramos admiradores de Tex, o cawboy, e seguíamos suas aventuras em cada revista nova que chegava as bancas. Viviamos praticamente no velho oeste. Tombstone, Nogales e Yuma, cidades mencionadas com freqüência nos filmes de John Wayne, eram bem ali perto e muitos dos filmes deles foram filmados num estúdio de Tucson, nossa cidade. Começamos a falar sobre os heróis dos quadrinhos. Joseph, um garoto ruivo e sardento que a mãe enchia de protetor solar, contou que o pai tinha uma coleção de gibis “maneira” com um mascarado chamado Cavaleiro Negro e um meio mexicano, o Cisco Kid. "Cisco Kid levava os coldres invertidos e para puxar os revolveres ele precisa cruzar os braços na frente do corpo e puxar os colt de canos tão longos que quase lhe chegavam ao joelho. Muito maneiro!" Outro, Robert, filho de um médico, falou mais uma vez sobre sua coleção de Tex e os meninos discutiram sobre lendas, fantasmas e espíritos de antepassados que recheiam as histórias desse herói. O assunto era bem apropriado para nos encher de receios já que o sol já começava a se pôr por trás dos montes mais altos e algumas sombras deixavam a trilha escurecida. Andar tornava a volta muito mais demorada e o tempo ia passando rápido. Aí, Steve disse que estava ficando tarde e que tinha de correr para casa para fazer um dever que valia pontos que ele precisava muito. Montou na bicicleta e foi embora, com a gente gritando: “Mariquinha!”, “Filhinho da mamãe!” e outras coisas piores atrás dele. Meia hora depois, Robert e outros dois meninos também se foram. Não houve mais xingamentos desta vez. Eu, Joseph e outro garoto, que tinha o apelido de Lelo e que nem conhecíamos bem – era de outro bairro – continuamos andando, cansados e sem falar muito. Com as trevas da noite descendo sobre as ravinas voltamos a falar de Histórias em Quadrinho e o Lelo comentou sobre uma série de revistas do Batman , chamada O Cavaleiro Solitário.- São umas aventuras muito violentas, em que Batman já está “coroa” e muito indignado. Vocês já notaram como todos os inimigos e criminosos que ele enfrenta são pirados?- É mesmo. O Pingüim e o Coringa são muito malucos. (descíamos um valado e logo a trilha voltava a subir, era muito cansativo andar empurrando as bicicletas e o tempo voava).- Parece que ele tem o azar de sempre dar de frente com gente louca. Os “caras” que mataram os pais dele, quando ele ainda era garoto, também eram todos muito doidos. (Joseph associou o caso com um outro).- Minha mãe e uma amiga, um dia desses, falavam de uma conhecida que todo o homem que namorava era malandro e se aproveitava dela. Aí ouvi minha mãe dizer que algumas pessoas nascem com um destino de sempre repetir o mesmo erro. Igual ao Batman, sempre encontrando pela frente um marginal “lelé da cuca”. (discordei)- Acho que não tem nada a ver com destino. Cada pessoa forma uma personalidade que naturalmente dá preferência ou se identifica com um tipo de pessoa. Aí a história está sempre se repetindo.De repente a noite caiu, ficou escuro mesmo, e só a bicicleta de Lelo tinha farol. Os dois garotos pediram desculpas e disseram que não podiam ficar mais comigo. Que os pais já deviam estar “doidos da vida”. Joseph prometeu avisar a minha mãe, mas eu disse que agora não faltava muito para chegar e pedi que ele esperasse uma hora depois de chegar em casa e, se eu não ligasse pra ele, então podia avisar a Mary Ann. Eles se foram seguindo o rastro de luz amarelada do farolete enquanto continuei empurrando a minha bike sozinho no escuro. Fiquei tão desamparado e triste de não ter mantido nem um amigo ao meu lado que disse pra mim mesmo que nunca deixaria um colega meu sozinho. “Nunca! Mesmo que tenha que andar com ele a noite toda!” A bicicleta ficava cada vez mais pesada, minhas pernas e braços doíam por causa dos intermináveis altos e baixos da trilha. Chorei, escutei os morcegos guincharem nos escuro e os coiotes uivarem muito longe. "Queria tanto os amigos em minha volta, mas não posso querer que tudo gire em torno de mim". Mas as dificuldades não duram toda a vida. O céu ganhou a luminosidade da cidade e aumentava a visibilidade do caminho e, de repente, as luzes da cidade iluminaram a trilha e atravessei o arame farpado na horinha em que meu pai, minha mãe, alguns vizinhos e Joseph com o pai vinham chegando no fim da rua vindo em direção da trilha para me buscar. Me assutei pensando na vergonha que ia passar na frente de todos, talvez ganhando uns tapas do meu pai. Continuei andando desamparado até que todos correram pra mim com sorrisos no rosto e fui recebido com abraços, beijos e vivas, era um herói! Aprendi, ali, que a gente não deve perder a esperança e que as coisas sempre mudam. Até a pouco, pensava que levaria a primeira surra de minha vida e agora estava sendo abraçado por todo mundo. Gravei no arquivo de minhas emoções que a vida tem muitas surpresas e não se pode desistir nunca.Quando fui para a Univ. da Califórnia, em Berkeley, decidi estudar Arqueologia, a história do homem e sua evolução gravada nas rochas ou enterrada sob toneladas de entulhos e erosão, mas guardadas ali como um arquivo perdido deixado de propósito para trás para que o homem do futuro, ou de nosso presente, pudesse entender como foram as conquistas que o gênero humano conseguiu. Recebi o diploma de PhD em 2005, um pouco antes da morte do papa João Paulo II, com uma tese desconcertante: “Reportando Famílias Americanas aos Sumérios”.Sempre tive a fama de um CDF diferente. Estudava “pra caramba”, como diziam meus colegas de turma, mas era um aventureiro “porra louca” para meus amigos. Meu pai me deu permissão para fazer um curso de alpinismo leve, muito a contragosto de Mary Ann, mas nenhum dos dois tinha idéia dos perigosos rafts que eu fazia com os amigos e outros aficionados, no rio Colorado. Uma noite, depois de uma demora que deixou meus pais cheios de aflição, eu, seu filho único, apareci amparado pelos amigos e com uma séria luxação no braço provocado, segundo eles – todos falando de acordo num testemunho evidentemente ensaiado – porque “caiu quando escorregou numa inocente pedra cheia de musgo”. “Tem pai que é cego”, dizia minha turma. Eu mesmo ficava admirado de como é que nem Paul nem Mary Ann ficavam sabendo de minhas idas para pegar surf nas praias do litoral ao sul de Los Angels. “Eles só vão saber de sua morte pelo jornal”, diziam brincando.Mas digo com orgulho que foi este “cara da pesada” que recebeu todo circunspeto o diploma e uma bolsa para pesquisar “Documentos do Homem Sumeriano do Quinto Milênio a.C”. Na primavera de 2005, em abril, depois de uma farra de despedida feita por meus amigos, voei para o Egito, com minhas economias e uma “boa grana” que meu pai e minha mãe me deram, para fazer uma pesquisa de campo que achava fundamental: procurar os elementos que iriam dar forma a uma teoria que fervilhava em minha cabeça.
Sempre cercado pelo amor de meus pais e da amizade dos colegas devia ser bem confiante e suficiente, mas durante este vôo estou me sentindo péssimo, como se tivesse uma pedra pesando sobre meu peito. Será uma premonição de alguma coisa de ruim? Vou encher bem os pulmões numa respiração abdominal e segurar... Estou direcionando para meu coração... Parece que ele fica mais aliviado mesmo. Repetir 9 vezes. Estou lembrando daquela brincadeira que a turma fazia quando pedalávamos por uma floresta de pinheiros ou eucaliptos tinha um idiota que sempre dizia: Puxe e prenda que este é do bom. O ar puro e o cheiro do mato. Já estou me sentindo melhor. O Pacífico está lá em baixo. A África é meu destino. Não posso ficar curtindo esta dependência de companhia.O avião pousou no aeroporto do Cairo bem cedo pela manhã, mas o sol já estava fervendo sobre a pista e reverberando nas folhas de palmeiras que se avistam para todo o lado que se olha. Já instalado no hotel ligo para a Universidade procurando pelo professor de Arqueologia Abdul N Latif que havia feito um curso comigo, em Berkeley.- E aí cara!- Adam, seu grande fp, você chegou! Olha, estou para entrar em aula, mas logo que eu terminar ligo pra você. Vou passar o telefone pra minha assistente, deixe seu número com ela. Vê se te cuida!Tomo banho, me barbeio e desço para fazer uma refeição reforçada – o breakfast para mim é coisa séria. Com l,82m de altura peso lisos 89kg de ossos fortes e musculatura trabalhada. Meu cabelo é crespo e alourado, ando sempre bem queimado pelo sol e se não cubro o nariz com protetor solar fico com ele “mais vermelho que um pimentão”, como me repetia vezes sem conta “dona” Mary Ann. Coloco uma calça jeans justa, uma camisa verde garrafa folgada e cubro os olhos castanhos – “com reflexos de ouro”, como dizia Jeanne, a garota com quem estava “ficando” ultimamente – com uns bonitos óculos escuros e saio para conhecer a cidade dos mercadores, o Cairo. Ando pela margem do Nilo. Hoje, o Cairo é uma cidade moderna, cheia de prédios lindos e muitas lojas de grife. Quando chega perto das 11:30 o celular toca o sinistro “toque de silêncio” e atendo.- Seu sacana, sai de cima dessa mulher e venha encontrar-se comigo no restaurante Naguib Mahfouz. Anote aí o endereço. Se você se perder pergunte ao primeiro camelo que você encontrar. Esses bichos têm um QI com 50 pontos mais do que o teu.- Olha aqui, seu babaca. Se você me levar para comer olho de cabra ao suco de mijo de camelo eu vou te “encher de porrada”.- Vai nada, bonbonzinho da mamãe. Vem logo!O restaurante é típico, com os garçons vestidos à moda mais turca que egípcia, e a comida muito gostosa. Mas antes bebemos cerveja e comemos amendoim enquanto conversamos. Primeiro, amenidades e política, depois a paixão de nossas vidas: o homem primitivo. Abdul estuda o ser humano depois do início da história, por volta de 3.500 anos a.C., em especial no norte da África. Eu procuro informações guardadas pela mãe Terra sobre o homem há 4.500 anos a.C, muito especialmente sobre os sumérios que viveram no vale dos rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia.- Prometa que não vai rir.- Você vai me falar alguma coisa, Sahib? Então me deixe rir primeiro, porque sei que vai vir a maior piada do ano. Há, há, há.- Olhe, aquele camelo lá do outro lado da rua está olhando pra cá. Essa tua risada mais parece um relincho de camelo.- Meu prezado Doutor. Primeiro, não é um camelo, é a fêmea dele.- Um camelo fêmea então.- Camelo fêmea é sua preciosa...- Olha o que você vai falar!- Eu ia dizer: última namorada, tá? Diz-se, camela. Assim, com nobreza, como devem ser tratadas as coisas da Terra dos Faraós...- E eu tenho que ficar ouvindo isso!- Segundo, menos nobre colega, o camelo não relincha como faz o cavalo, ele grunhe. Como você vai andar em cima desse animal, meu amigo, é bom conhecer um pouco dos hábitos dele. O que Hollywood lhe ensinou nas sessões de cinema foi caro e quase tudo errado. (olhavam sorrindo revivendo em pensamento os bons momentos passados na universidade).- Abdul, agora, posso te falar a sério sobre uma teoria que tenho e de outra vez você me ensina sobre camelos?- Vai em frente (e toma um gole enorme do chopp como se estivesse a morrer de sede; apesar de ser um país árabe e eminentemente muçulmano, no Egito, a proibição de bebida alcoólica não é tão severa como nos paises do oriente médio, mais para o norte).- Minha mãe era muito católica. Meus pais eram a terceira geração de famílias de poloneses que imigraram para os EUA. Ela era uma católica típica do tempo de João Paulo II.- Foi uma grande perda. O homem era o máximo!- Você é muçulmano?- Sou e não sou. Quando estou no meio de outros desta fé eu faço minhas orações virado para Meca, tenho até o meu tapete, e tudo o mais. Mas pessoalmente, Alá está no céu e eu na terra e não temos muito a haver um com o outro.- Eu sou cristão católico romano do mesmo jeito, não sou fanático. Mas falei disso para dizer que foi minha mãe que me impressionou com a história de Adão, Adam, a causa do meu nome.- Legal! Para ela você era o primeiro homem. Isto é coisa que nem Osíris explica. (enquanto conversamos as impressões de tudo a minha volta também se imiscui na conversa; o oriente é diferente do ocidente em sua arquitetura, suas roupas, comidas, decoração, cheiros e costumes e todas estas impressões se misturavam no meu subconsciente).- Que é que Osíris tem a ver com isso?- Meu irmãozinho, uma aula minha custa caro! Continue tua exposição.- Vai a merda.- Vamos, não fique aborrecido. E Adão?- Adão existiu.- Está certo. Vou escrever pro seu pai – Paul, não é? – insistindo para que ele peça de volta o dinheiro que gastou contigo lá em Berkeley. Cara, nem um judeu de solidéu seboso na cabeça acredita mais nisso hoje em dia! Adão! Só você mesmo!- Escute! A base da minha teoria é outra, mas tem a ver com Adão. É de que o homem já escrevia no início do 5º milênio antes de Cristo e se baseia numa tradução da Bíblia feita no século 18 por um erudito holandês, Campegius Vitringa, que entendeu que a expressão hebraica toh lê dhóth – que era vertida pelos tradutores da Bíblia como “gerações” – devia ser traduzida como “história”.
- Um momento, você quer mexer nos paradigmas de teus mestres? A escrita não surgiu no meio do 4º milênio a.C, mas 500 anos antes. E sua base acadêmica para derrubar uma porção de parâmetros é uma interpretação de uma palavra na Bíblia?
- Exato. Deixo eu continuar. Como no capítulo 5 versículo 1 de Gênesis (Gen. 5:1) – o primeiro livro da Bíblia, você sabe – diz: “Estas são as gerações de Adão”, e é seguida de uma lista de nomes, uma genealogia, pareceu a muitos eruditos que essa tradução era a mais certa, gerações, descendência. Porém como em Gen. 2:4 diz: “Estas são as gerações do céu e da terra” e estes não tem descentes então a tradução se mostrou incorreta; devia ser “Estas são as histórias da criação do céu e da terra”.-Você está gastando um dinheirão de uma fundação protestante para provar uma premissa baseado só numa versão de uma palavra da Bíblia?!- Deixe-me explicar outra coisa, agüenta aí! Os capítulos e versículos - divisões no texto bíblico para facilitar ao leitor encontrar uma determinada frase - foram interpolados na Bíblia muito depois e o que houve é que esta expressão má traduzida: “Estas são as gerações de” estava, na verdade, terminando um parágrafo e uma história e não começando outro assunto, uma lista de descendentes, como os copistas antigos entenderam.- Nosso Alcorão também é dividido em capítulos e versículos. Quando é que a Bíblia foi copiada deste modo?- Quem teve a idéia de dividir a Bíblia em capítulos foi Estevan Langton, arcebispo de Cantuária, professor na Universidade de Paris, em 1214 d.C. Somente três séculos e meio depois, em 1551, Robert Etiene, editor em Paris, fez a experiência dividindo o Novo Testamento na língua grega em versículos. Ficava mais fácil para a congregação na igreja reformada, ou protestante, procurar uma frase na Bíblia se o orador indicasse o livro, o capítulo e o versículo onde ela estava.- A gente encontra uma coisa pronta e pensa que sempre foi assim, não se dá conta de como elas foram mudando desde o começo. É o mesmo que acontece com o mundo. Está tudo aí, parece que já foram criadas prontas desse jeito, e até hoje é duro para muita gente entender que nada é estagnado, que tudo vai se modificando, transformando-se, evoluindo. Que houve um tempo em que tudo era completamente diferente de agora.- É fato. Agora me deixe concluir o raciocínio sobre o que eu procuro. Abdul eu quero encontrar escritas antigas, do tempo de Adão. Deixe eu falar de novo da tradução em Gênesis. Como nos dois textos que eu mencionei, que falam de “história” aparece também a palavra "sé-fer", livro, o erudito Campegius traduziu assim aqueles textos: “Este é o livro da história da criação do céu e da terra” e “Este é o livro da história de Adão”. Acho que esta é uma pista excelente de que havia livros – provavelmente tábuas de argila – contando histórias daquela época e de coisas acontecidas nos primórdios. Estas coisas têm a ver com a Mesopotâmia, porém estou aqui no Egito por causa de Moisés.- Que a tradição diz ser o escritor do primeiro livro da Bíbllia, não é?- Exato. Moisés deve ter usado aqueles livros primitivos, escritos ainda no 5º século a.C. para escrever o início de Gênesis. Ele deve ter visto algumas dessas tabuinhas de argila dos sumérios aqui no Egito e copiado essas informações. Registros escritos muito antes de 3.500 a.C, Abdul! Você vai dizer: O Que é que eu tenho com isso?- É, onde é que eu entro nesta história?- Você vai começar aquela pesquisa de campo em Saqqara na semana que vem, não vai? Daqui há quatro dias, não é?.- E daí.- Vim aqui para te acompanhar. Todas as despesas por minha conta. Quero acompanhar a expedição. Tenho esperança de achar algumas tábuas de argila dos sumérios trabalhando junto com vocês em Saqqara. Sabe, Abdul, serão provas de que o homem já escrevia há 6.000 anos atrás! Minha decisão é encontrar provas de que o homem não começou a escrever só a partir de 3.500 a.C, mas cinco séculos antes. É isso. Posso ir com vocês?- Pode, mas vai ter que esperar 4 dias!- Não tem problema! Tenho muita coisa que ver por aqui!- E não vou poder te pajear na cidade, Adam. Vou a um congresso, em Jerusalém, portanto te cuida. Tem mesmo muita coisa para ver por aqui, seja na cidade ou no deserto. Entretanto faço minhas as palavras do aconselhador em Provérbios, outro livro da sua Bíblia. Está vendo como eu conheço as coisas? Numa tradução livre tem nos Provérbios um dito assim: “Agora escute, meu filho, afaste-se da mulher vadia, da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis”.
- Bem, Abdul, você sabe muito bem onde enfiar seus conselhos!O garçom chegou neste momento terminando com esta conversa edificante de dois jovens. Trazia numa bandeja feijões cozidos sem caldo, arroz com lentilhas e uma costela de carneiro assada que tinha um perfume inesquecível. A cultura antiga que vinha do tempo das pirâmides mexia com minhas papilas gustativas e meu estomago roncou de satisfação e fome.CAPÍTULO II – CAIRONaquela tarde comprei um ingresso e naveguei pelo rio Nilo me sentindo um Moisés e cada detalhe fazia lembrar algo que havia lido na Escola e na Universidade, ou, envolto em magia, ouvido minha mãe ler da Bíblia. Pensei: “A cultura cristã-judaica enche a gente de reverência por qualquer coisa, seja uma corrente suja de um rio, por velhos tijolos amontoados numa arquitetura de formas brutas e até mesmo por um camelo que dejeta bosta na rua ou por uma duna que enche os olhos da gente de areia e nos faz lacrimejar; o que ajuda bem a fingir que não se está chorando feito um beato tolo”. Mas era lindo navegar o Nilo, tanto ao atravessar o centro da cidade – moderno, com altos prédios espelhados e avenidas largas, e o velho rio qualhado de iates luxuosos e lanchas rápidas – como ao margear os arredores, vendo bojudos barcos a vela pesados de mercadorias e o deserto solitário e confrangedor com pequenas chácaras e suas verdes plantações desfilando às suas margens.No dia seguinte foi visitar o museu do Cairo. Era 6ª feira e julguei que encontraria o museu sem muita gente, mas que nada, um movimento de gente de todas as partes do mundo fazia o lugar ferver. Mas fiz de conta que só havia eu andando pelas salas altas, escuras e frescas que eram para mim tão veneráveis como uma catedral gótica para um católico fervoroso. Sempre pensei em mim mesmo - um pensamento rápido com um vôo de beija-flor e que da mesma maneira ligeira rejeito temeroso - como um sujeito justo, um servo de Deus, quase um filho único. Não me sinto bem com isso. E assim, devoto, perambulei pelos aposentos observando tudo com muita atenção, mas no fundo da mente um desejo me compelia para um ponto do museu. Era tão forte como o norte magnético para a bússola. Evitava pensar nele para usufruir da vista de tantas coisas magníficas, mas de alguma forma o desejo de ver aqueles objetos especiais era tão forte que interferia completamente com minha visita e decidi resolver l isso de uma vez e fui ver a sala de Tutancamon. Havia vários visitantes em volta das vitrines bem protegidas. Faraó da XVIII Dinastia, ele morreu jovem e sua máscara mortuária era admirável em suas cores, dourada, azul e preta e em sua forma doce e majestosa. Os peitorais que o jovem monarca usava nas cerimônias com a figura da águia de asas abertas projetavam direitinho a cena de uma recepção da corte egípcia à figuras importantes que vinham de todas as partes do mundo antigo se pavoneando nos salões do palácio. Os braceletes largos e o cetro de ouro com a figura de Anubis, o deus com cara de chacal, me faziam reverenciar os antiso artesãos que imaginaram aquelas formas com perfeito equilíbrio e conseguiram confeccionar jóias tão magníficas. O Ankh, a cruz ansata, o símbolo da vida e da fertilidade, causou-me profunda emoção como católico. O totem simples e poderoso das duas retas se cruzando um pouco acima do centro acompanha a fé dos homens desde o passado mais antigo e foi escolhido pelos cristãos como o símbolo da morte e da vida pela ressureição. As horas se passaram sem eu sentir. Sai tarde do museu e cheio de fome. O resto do dia e parte da noite passei visitando as lojas da cidade e comprando lembranças pequenas e bem escolhidas para meu pai e minha mãe. Evitei as avenidas largas preferindo as vielas estreitas com suas lojas sem portas e com pouca profundidade, os produtos – alimentos, tecidos, jóias, artigos de decoração – ficando expostos ao alcance da mão do passante, seus cheiros exóticos entrando pelo nariz e evocando outras vidas ou histórias ouvidas na infância.
E as mulheres. Flertei com uma bela morena. Não usava roupas árabes, vestia-se como uma ocidental, mas o rosto com sua cor morena, acentuado pelos olhos negros e pálpebras escuras, era impressionante. Andamos por uma viela cheia de gente nos desviando e tentando manter uma conversa. Não falo nada de egípcio, mas ela entendia e falava um pouco do meu idioma. Esta é uma das vantagens de se pertencer a um povo que é um império mundial. Desde os ingleses, meus antepassados, que nossa língua se difundiu pelo mundo, tornou-se obrigatória nos negócios e assim me sinto muito tranquilo para me comunicar em qualquer lugar. Pensei no caso do povo da moça. Um homem saindo de seu país sem conhecer o inglês mal consegue expressar suas necessidades mais prementes e da cultura dos estrangeiros não apreende nada. Sentamos em um bar e deixei ela falar dela, de seu trabalho e de suas aspirações e disse pouco de mim mesmo e da razão de estar ali. Me deu vontade de levá-la para a cama, mas desenvolvi um jeito de me aproximar das mulheres, convivendo com elas, discutindo interesses comuns e deixando rolar o desejo que a simples conquista, o levar a mulher para cama e despertar a libido só pra mostrar que estou em forma não me diz nada. Assim nosso encontro foi só uma promessa, planos de nos vermos de novo e ela me mostrar a cidade, troca de e-mails e se tornou só mais outra pessoa que passou por minha vida de raspão e o encontro não acrescentou nada, nem pra mim e, acredito, para ela também. Tenho um traço de caráter que me faz muito reservado, mas de alguma forma se mistura com um jeito brincalhão e alegre que me torna aceito ou melhor compreendido pelos outros.
Naquela noite anotei num caderno de apontamentos: “A maneira que um povo vê a realidade da vida influi na sua arquitetura. Os mestres construtores criam formas que são estranhas para o viajante que vem de outras terras, de uma outra cultura e com outra história. O muezin que do alto do minarete emite seu canto lamentoso é muito diferente do badalar dos sinos de uma catedral, mas de alguma forma um e outros evocam algo que está acima da vida terrena e dos problemas cotidianos do homem”. No sábado, depois do desjejum reforçado, juntei-me a outros turistas, peguei uma caminhonete e atravessei o deserto em estrada bem asfaltada em direção a Esfinge. Depois que você já viu horas de deserto a coisa fica monótona e me distrai lendo os folhetos turísticos. Com a figura do leão com cabeça humana em cores ocres e amarelas dominando boa parte da página, o texto dizia: "Situada na borda do planalto de Gizé, ao sul do complexo da Grande Pirâmide está a grande escultra do leão deitado. A figura não está postada no topo do planalto, mas encontra-se no centro do que parece ser o que restou de uma antiga pedreira. Apenas sua cabeça e um pouco da parte superior de suas costas se projeta acima da elevação geral do planalto que a circunda. O local foi uma pedreira e a descomunal escultura foi construida no sentido oeste-leste. O rosto daquela esfinge é considerada como a cabeça do faraó Quéfren ou possivelmente a de seu irmão, o faraó Djedefré o que dataria sua construção na quarta dinastias (2723 a.C - 2563 a.C). Com 57m de longitude, 6m de altura e 27m de largura a grande esfinge é uma das maiores estátuas lavradas numa única pedra em todo o planeta. Depois de soterrada e desencavada várias vezes ela foi restaurada completamente em 1927. Contam as lendas que o nariz da esfinge foi arrancado por balas de canhão do exército de Napoleão Bonaparte, mas relatos mais confiáveis dizem que ele foi estirpado por um fanático guerreiro muçulmano no 14º século da era cristã". Quando ela começou a ser divisada entre as dunas causou um frisson em todo mundo e não fiquei imune ao contágio da reverência e do assombro que aquela visão despertava. Uma inglesa cavalar, na poltrona a minha frente, dizia: “Decifra-me ou te Devoro”. “Oh, cultura inútil!” – disse pra mim mesmo e pensei se Andy Warhol conseguiria interpretar aquela visão com uma pintura que destacasse a banalização de quaquer figura muito exposta pela mídia. Mas diante da tremenda construção de tijolos na planície de Gize me afastei de todos numa contemplação respeitosa e admirada. Minha mente inquisitiva fazia uma pergunta atrás da outra enquanto meu intelecto de Doutor respondia a todas elas tirando o véu da magia, da crença em seres extraterrestres e de milagres dos deuses. Tudo era explicável pelas ciências da Matemática e da Engenharia. Andei a passos vagarosos e depois mais rápidos sabendo que o tempo da visita estava se esgotando. Mas pensei em muitas coisas: “Um leão com rosto humano deitado. Na Grécia, em Tebas, a Mitologia falava de outra esfinge, cópia desta: uma mulher com corpo de leão e asas de águia. Em Nínive, os persas esculpiram em relevo nos muros de seus palácios touros com troncos humanos. Os totens, animais simbolizando qualidades humanas. As lendas de todos os povos estão cheias de figuras assim: as sereias, mulheres com cauda de peixe, o Minotauro, homem com cabeça de touro, o centauro meio homem meio cavalo, os anjos, com asas de águia, e os diversos deuses do Egito”.O grupo animado foi adiante ver de perto as pirâmides e os acompanhei pensando nas miríades de homens e mulheres que participaram na construção daquele conjunto monumental que tem resistido a inclemência das forças da natureza por tantos séculos. Eu tinha prometido a mim mesmo que não faria o papel de tolo subindo nas pedras tortas e parecendo mal equilibradas da colossal construção, mas não consegui conter-me e escalei a pirâmide de Queops como um colegial “porra louca” que ainda era. Mas minha cabeça mais madura meditava na vontade maluca que o ser humano tem de fazer um nome para si mesmo, deixar sua marca na terra, não ficar esquecido, criar um meorial que diga a outras gerações, quando ele não estiver mais aqui: eu venci a vida e deixei minha marca indelével no mundo. Pensei:“Nós sempre passamos por cima de todo mundo para alcançar o que é melhor para a gente. Quantas pessoas morreram nas guerras, nos genocídios ou pela fome induzidas por políticas e interesses econômicos? Por loucos que queriam fazer um nome para eles mesmos a custa do sangue de uma multidão de indivíduos que não deixaram nenhuma marca de si na história. Uma loucura, cara!” Recordei o que aprendi sobre aquela que é a maior da pirâmides. Foi construída na 4ª dinastia no reinado do faraó Queops que durou 22 anos e começou - dei uma olhada no guia turístico - em 2551 e terminou em 2528a.C. Tem...l50m? - dei outra olhada no livreto - Agora tem 137,16. Perdeu quase uns 10m nestes 4.500 anos. Alguns acreditam que seus construtores tiveram acesso a conhecimentos muito mais adiantados do que os humanos do seu tempo dominavam. Cada ângulo da base aponta direitinho para os pontos cardeais e, incrível, ela tem um conduto em uma das faces que no momento exato em que começava o ano egípcio e a estação da inundação do rio Nilo a estrela Sírio podia ser vista lá de dentro da câmara principal! Hoje ela tem as grandes pedras sem nenhum revestimento, mas na época da construção era toda revistida de calcário polido que brilhava a luz do Sol.
Por falar nisso o Sol estava perto do horizonte e umas poucas nuvens deixavam que se olhasse para ele. Anotei em meu caderno: “Um astro tão imponente só poderia inspirar devoção ao homem primitivo que o chamava de Shamasha, Samas e Sekhmet. Imagine o primeiro homo sapiens se dando conta, pela primeira vez, de que o Sol que se punha estava indo embora e que talvez não voltasse mais! Hoje, os filmes que falam da queda de um cometa brilhante na Terra que levantaria uma tremenda quantidade de poeira fazendo desaparecer o Sol, como nas profecias cristãs: ‘o Sol ficará escuro, a Lua não brilhará e as estrelas cairão do céu’ não causam em nós a comoção que causou àquele primeiro indivíduo pensante: o Sol foi embora! Se ele não voltar como viveremos na mais negra escuridão?”.
O oeste ficou cheio de cores vermelhas e alaranjadas, uma visão magnífica, mas virando-me para o lado oposto vi a sombra da noite avançando pelo deserto como a praga da escuridão no tempo de Moisés. Já dentro do ônibus, no meio as conversas em diversos idiomas, via os faróis lutando para iluknar um pedaço da estrada dominada pelas trevas pesadas. Aquilo assustava. Felizmente a claridade no Cairo, que refletia no céu, era reconfortante. O mundo moderno não é próprio para curtir os medos de pragas e da morte.Domingo fui a Alexandria, caminhei pelas areias grossas e amareladas onde as ondas mansas do Mediterrâneo se aquietavam num vai e vem que transmitia uma calma que meu espírito arisco necessitava, mas repelia. Almocei uma comida árabe bem leve: tahini, salada com bastante semente de gergilim; Kebab, carne grelhada; Kushari, arroz com lentilhas e bastante cebola bem frita; e trouxinha de repolho com arroz acompanhado de homus, pasta de grão de bico, e pão sem fermento. Quando sai da mesa não me sentia pesado com toda aquela comida, mas bem disposto para bater perna pela cidade fundada por Alexandre, o Grande e construída pelo arquiteto grego Dinócrates. Quando voltei para o Cairo fui direto para o hotel preparar-me para o trabalho que começaria bem cedo no dia seguinte com a viagem para Saqqara.CAPÍTULO III - SAQQARAAbdul N Latif dirigia, azafamado, os preparativos para a caravana exploratória. Enquanto me aproximava do grupo, vindo do hotel, estudei o amigo em sua máscara de líder responsável por uma complicada pesquisa: “Não é nenhum Omar Shariff, mas também não tem nada do gordo companheiro de aventuras de Indiana Jônes”. Meu amigo egípcio, com sua cor morena, era alto, magro e andava um pouco curvado. Os olhos pretos eram sombreados por longas pestanas, com sobrancelhas espessas e olheiras de um Vicente Celestino. "Gente, como é que me lembro deste velho artista de cinema? Como a cultura é forte, vejam só!"- Bom dia, Latif!O outro interrompeu o que falava com um aluno e se virando cumprimentou-me de um jeito comedido. Não era mais o colega de estudos e de farras, mas o professor responsável por um projeto que envolvia alguns milhares de dólares, preocupado com o comprimento de planilhas meticulosamente planejadas e pela integridade física de vários jovens, rapazes e moças, além dos funcionários e equipamentos.Tudo pronto a caravana foi para o sul, acompanhando o curso do rio Nilo e depois de meia hora, numa encruzilhada, virou à direita passou ao largo das ruínas de Menfis – capital das primeiras Dinastias – e depois de outra meia hora de marcha chegou a Saqqara, um platô com a pirâmide de degraus de Imotep bem a vista, em meio a outras ruínas. Um lugar solitário apésar dos turistas.Na primeira meia-hora, Abdul, ainda estava envolvido com planilhas, relações de material e diversos documentos que precisavam ser lidos e assinados. A camioneta Lad Rover Discovery levava junto ao motorista, o estudante Amal e no banco traseiro, Abdul, atrás do motorista, e eu ao seu lado. Com as janelas fechadas por causa do ar-condicionado, enquanto o mestre e o aluno conferiam a papelada, sentado meio virado no banco olhava os barcos a vela desfilando pelo Nilo e as pequenas fazendas agrícolas e suas plantações luxuriantes de frutas, legumes e hortaliças. Depois, concluído o trabalho, Abdul pode me dar atenção mostrando interesse por tudo o que tinha visto em seu turismo pela região. Quando falava da visita ao Museu, trouxe a baila o que Abdul havia insinuado sobre Osíris.- Eu vi a trindade egípcia: Osíris, Isis e Hórus. Lembro que na ocasião pensei que na religião cristã nós temos uma trindade que é mais difícil de compreender. (mostrando que conhecia um bocado do cristianismo Latig falou)- Não tem dúvida: Pai, Filho e Espírito Santo são um só e indivisíveis! É complicado de entender. (o o jovem Amal perguntou).- Jesus é qual deles?- Jesus é o Filho, mas é também o mesmo Deus. (ele não entendeu).- É difícil de compreender isso! (o professor Abdul falou sobre a tríade egípcia).- Nossa trindade é mais Cosmogônica. É uma explicação da criação do Universo em forma de seres lendários. Como na Mitologia Grega.- Em nosso encontro, logo quando cheguei, você disse que a atitude de minha mãe, de me dar o nome de Adam, era – eu sei, é lógico que você falou de brincadeira (disse, evitando a interrupção de Abdul que estendeu a mão) – a atitude de minha mãe nem Osíris explicava. O que você quis dizer com isso?- Foi de brincadeira, mas me referi ao fato de que Isis ressuscitou Osíris morto e gerou com ele a Hórus que se tornou seu marido, e era tudo em sua vida. É uma atitude muito comum da mulher, mãe, transferir para o filho uma atenção, um “amor” (ele mesmo fez o sinal de aspas), que acaba criando uma situação de conflito com o marido. (comentei)- Estranho como essas lendas antigas tratam de sentimentos e emoções que o ser humano moderno sente com uma intensidade que acaba afetando a vida afetiva, a carreira, tudo na vida da gente. (Abdul continuou).- Na nossa Cosmogonia, Osíris, é como Zeus. É quem impôs ordem no mundo. Hórus é mais como Jesus, eu acredito – me corrija se estou errado – , aquele que mostra o caminho para o indivíduo viver em harmonia com a ordem que o Pai deu ao Cosmo.- Não sou teólogo, mas a explicação me parece esta mesma.- Existe mais em nossa trindade. Tem uma coisa que eu acho fantástica. Eles são os deuses do caos, aquilo que a astrofísica diz ter acontecido antes do Big Bang ou durante o colapso que formou o Universo.- Fala disso mesmo? (Adam fez uma pausa pensando e continuou) Pensando bem, os gregos, diziam que antes de Zeus houve os deuses Caos e Gea.- E nós temos Nun que é – preste bem atenção! – ele é o barro e o espírito que deu forma a tudo. (Diante do assombro de Adam ele continuou) Percebeu? Igual a formação de Adão da Bíblia: o barro e o Espírito.- Lafit, é demais!- Escuta só! O Espírito de Nun era uma energia – conforme nomeamos hoje em dia – que produzia força e luz. Capito? Elétrons e fótons. (o jovem Amal acompanhava a conversa e nos interrompeu).- Doutor Adam, na aula do professor Abdul a gente faz uma cara igualzinha a que o Sr. está fazendo agora.- Que cara, rapaz?- Bestificado! – e eles riram gostoso, alegres, felizes, a felicidade de saber, a alegria de se deparar com novos insights, o gosto bom de estar vivo e aprendendo.Quando chegamos em Saqqara não havia lugar para mim na confusão que se seguiu – o descarregar de caixas, pacotes, mochilas e embrulhos – e sai por ali lembrando do filme A Múmia e de um Imotep diferente do que aprendi nos livros: o arguto primeiro-ministro, o concentrado arquiteto e o médico dedicado. Mas assim era Hollywood, segundo a abalizada definição de Abdul: uma escola que ensina tudo errado. Zanzei por ali entre dunas de areia, sempre presente e tocada pelo vento suave entrando por dentro de minhas roupas - estava com um óculos todo fechado em volta dos olhos e sem grau, para proteger minhas lentes de contato. Aquele lugar era menos imponente que o vale de Gizé com suas poderosas pirâmides e transmitia uma apreensão inexplicável, tinha um ar soturno que deixava o coração confrangido. Imaginei que devia ser por sua idade mais antiga. Erigida na 3ª Dinastia, por volta de 2630 a.C, pelo faraó Djoser e arquitetada por seu vizir, Imotep, Saqqara era um complexo de construções reais com 6km na direção norte-sul e uma largura de 1,5km. Andei em sua volta vendo como aquela solução arquitetônica foi um desenvolvimento natural dos antigos túmulos que eram simples tumbas quadrangulares, mastabas, e ali, Imotep colocou uma menor em cima da outra e edificou um túmulo portentosos com 65m de altura, como nenhum faraó das dinastias mais antigas tinham construído pra si. E o mais formidável não está para cima, mas para baixo da terra. Foi feito uma escavação no granito0 maciço com 30m de profundidade e construído um edifício subterrâneo com 12 andares com centenas de câmaras e galerias. E o cuidado com o acesso ao interior sagrado do túmulo? No guia diz que a capela no lado sul tem um poço profundo que parece ser a entrada para a pirâmide mas não é, é um caminho falso. Tanto a entrada verdadeira como esta estavam bloqueadas por pedras de 10t de peso. Depois, todo o interior foi revestido com um ladrilho feito de granito que sofreu alta caloria e fundiu seus cristais de quartzo. Foram os primeiros ladrilhos vitrificados.
"Não sou burro, aprendo fácil e sei estudar e tirar novas conclusões e relatar com algum estilo o valor do que aprendi, mas ainda assim não consigo compreender como alguém consegue desenvolver tantas apetidões diferentes. Imotep foi um médico que – segundo esse meu guia turístico – diagnosticou mais de 200 doenças e relatou-as em hierógrifos, falando até sobre a função e posição dos órgãos dentro do corpo e sobre a circulação sangüínea. Além de atender centenas de doentes e estudar detidamente seus problemas ainda encontrava tempo para, à noite, estudar as estrelas. Foi um dos primeiros astrônomos a fazer um mapa da abóboda celeste. É um bacado de coisa!"
Conforme sugestão de Abdul fui visitar o Serapeum, nos limites do complexo. Depois do calor sufocante do deserto descer as escadarias até os corredores escavados em rocha arenítica foi um prazer. Com entradas para 20 salas e com pinturas do touros Apis (bois com o disco solar entre os chifres) – que eram os animais sagrados do deus Ptah – nas paredes o interior do Serapeum foi um passeio impressionante. A frescura e o cheiro de coisas muito antigas causava uma forte impressão de que o ser humano não está sozinho, como ser inteligente, no Universo. Parei estupefato diante do sarcófago com uma pedra (dizia um quadro informativo) que pesa 70 toneladas. Depois voltei sobre meus passos para o local que a expedição estava sendo montada. O tempo todo a pirâmide mais velha do mundo, feita em degraus, me observava como mais um ser insignificante que o tempo logo levaria deixando-a ainda por muito tempo para ver até onde ia chegar aquela raça belicosa e auto-destrutiva, os humanos. "Será que esta construção ainda vai existir quando outra raça dominar a Terra?" Só voltei a ficar frente a frente com Latif à noite, diante da barraca com luz elétrica e uma porção de comodidades, e que dava ao nosso trabalho um sabor de aventura. Pelo menos uma aventura de um grupo escoteiro. Tomavam uisque com gelo, gosto de dar bicadas pequenas no líquido dourado sentindo a ardência com sabor de plantas, terra fértil e águas de rios cristalinos descendo pela garganta e aquecendo o corpo. A noite no deserto estava ficando bem fria.- Então, vamos do início. Quando te escrevi contando das escavações que iríamos fazer aqui a procura de mais informações sobre o reinado do faraó Zoser ou Djoser, da 3ª Dinastia, você não disse nada. Passado quase dois meses, as vésperas da expedição, você me escreve dizendo que vem nos acompanhar. O que foi que aconteceu?- Um pouco antes desse teu início houve outro, lembra? Eu te escrevi contando do meu diploma e da bolsa para pesquisar na Mesopotâmia.- Certo. Depois é que te contei da minha pesquisa. Pensava que não ia te ver por muito tempo, você perdido lá no norte do Iraque.- Dizem que as coincidências não são por acaso. Naquela noite em que li tua carta entrei na internet buscando Saqqara, Imotep e outras que tais. Num site pouco ortodoxo li que Moisés, aqui no Egito, usou tábuas de argila com escrita cuneiforme da Suméria, que eram da coleção de Imotep, para escrever o livro de Gênesis.- Deus do céu! Tantos eruditos já disseram que Gênesis foi escrito séculos depois do Êxodo dos Israelitas e que não tem nada a ver com o mítico Moisés! Um estudo crítico revela inúmeras palavras e expressões que só se tornaram de uso comum centenas de anos depois da 3ª dinastia.- Existe uma tradição, Abdul, e elas são fortes. São indícios de verdades. Está bem, Gênesis não foi escrito por Moisés, mas quem o escreveu usou escritos dele e ele usou registros de outros homens mais antigos.
- Acho isto tudo muito anti-acadêmico. É coisa de místicos.
- Quer mais misticismo do que o que envolve este lugar?
- Está falando de quê?
- Dos que dizem que a pirâmide de degraus é um grande condensador de energias.
- Me poupa, Adam. Eu lido com fatos materiais e não com achismos.
- Bem, deixe eu voltar ao meu estudo hipotéico ou mítico – lembre que muita coisaz foi descoberta assim. As tábuas de argila da Suméria de que estou falando acredto que foram escritas antes de 4.000 a.C...
- Enquanto Moisés, se realmente existiu, viveu por volta de 1.000 a.C. É muito tempo!
- Não é isso o mais importante? Não importa o tempo que separe um acontecimento da época em que um estudioso tenta compreendê-lo, existe os escritos. Meu objetico é provar que há 6 mil anos o homem já não dependia só da palavra oral.- Você veio procurar registros cuneiformes da biblioteca de Imotep? Não te passou pela cabeça que estes registros foram levados para Heliópolis, ou Menfis, centros maiores onde Moisés – estou falado em hipótese – vivia? Ou pior ainda, se ficou aqui não pode ter sido roubado? Você tem pouca chace meu amigo!- Abdul, hoje eu te contei da minha visita ao Museu do Cairo. Eu vi a máscara de ouro de Tutancamon. Uma riqueza extraordinária! E ninguém a roubou por séculos. Quando os cientistas do século 20 escavaram seu túmulo a encontraram direitinho como ela foi deixada!- Está bem. É fé ou coisa assim, não é? Um começo legal para um cientista, hem?- Os tempos são outros, Abdul. A fé está na moda. (levantei-me) Vou dormir.
- Amanhã parece que teremos uma boa surpresa. (fiz uma cara de inquirição) Vai chegar uma pessoa que conhecemos, aliás, que você conhece muito mais do que eu.
- Quem?
- Vamos ver se ela chega mesmo. Aí você vai matar sua curiosidade.
- Estou sem força para querer saber qualquer outra coisa, hoje. Até amanhã.
Porém, quando fui para o beliche o sono não veio, mas chegou uma vontade enorme de escrever. Peguei na bolsa os manuscritos do romance que tentava fazer, reli-os e liguei o computador para voltar a escrever. 1º Capítulo - ADÃOO céu estrelado enchia todo campo de sua visão. Mexendo a cabeça para à direita, bem quieto, ele começou a ver no meio daquele emaranhado de luzinhas as figuras que conhecia tão bem: à sua direita, bem abaixo, Aquários. Ele pensava: “O homem no céu, entre as estrelas, entre os outros filhos de Deus, com o poder de verter águas das próprias mãos. O filho de Deus é mesmo muito poderoso. Ele é filho da terra e do ar, como eu. Tantas coisas ele fez para o Pai! Assim, também eu, vou aprender a dominar e criar muitas coisas”. Começou a rezar alto.“Eu sou o homem. Meu Deus, criador de todas as coisas, agradeço-te por estar vivo, por ter sido feito a tua imagem. Sou um espelho das figuras que o Senhor desenhou no céu”.Ele conhecia bem as figuras do céu, mas de onde? Fechou os olhos tentando se concentrar numa imagem, mas ela fugiu, perdeu a visão. Tornou a abrir os olhos, agora olhando bem à sua frente e encontrou Peixes. “Os dois peixes, um pra lá outro pra cá, numa luta sem fim entre viver para este mundo ou para a outra vida. O corpo físico e a alma ligados pelo cordão de prata. Esse signo é tão importante para mim! Sempre vou me preocupar mais com meu Deus do que com esta vida material. Fui feito para ser assim, por meu Pai”.Olhou devagar para a esquerda. Lá estava Áries. O caprino com seus dois cornos marrentos. “A força bruta resolvendo as questões, idéias sendo impostas pelo poder maior. As vezes um bom conceito nem chega a nascer e é pisoteado pelos ignorantes, os terrenos.” Ficou cansado, queria cair no sono de novo.Deitado no chão, virado para onde a lua estava declinando, o oeste, prestou atenção ao seu corpo. Estava coberto de barro ainda mole. Esfregou os dedos uns nos outros sentindo os grãos da argila se soltarem e se deu conta de que seus dedos eram fortes e cumpridos. Sentiu as unhas, redondas, sem pontas ásperas.
“Nasci. Deus me fez por Suas poderosas mãos”. Suspirou profundamente, com sentimento, sentido até. Percebeu uma pulsão na garganta e no peito, o coração batendo. Ficou ouvindo. A quietude era quase total, só os cri-cri contínuos que até nem se percebia ou um coac-coac mais ao longe. No meio daquela vastidão estava tão focalizado em si mesmo que seu corpo e suas sensações enchiam tudo. Num momento lhe pareceu que as estrelas, a lua, a escuridão do céu, os ruídos, tudo, fazia parte dele mesmo. Ele era tudo.Ergueu as costas e ficou sentado. Com as pernas abertas olhou seu membro enrijecido, tocou nele e delicadamente mexeu nas bolas macias. Arregaçou o prepúcio, a pele deixando aparecer o pênis de rosa intenso, a cabeça brilhosa, todo inchado. Levantou, andou um pouco para o lado, saindo debaixo da árvore copada, e urinou um jato quente que na madrugada friorenta produzia um vapor ligeiro. Sacudiu o membro que ia ficando flácido, e esticou os braços para o céu num longo espreguiçar.O terreno, uma colina suave, era recoberto de uma grama fofa, que naquela hora estava coberta de orvalho que molhava seus pés, enfiava-se entre seus dedos e fazia uma cócega gostosa. Um pássaro cantou. O silêncio quebrado pelo canto alegre ficou inquietante, parecia que ia mudar tudo. Ficou quieto, esperando. Os cheiros de mato molhado, da terra úmida, de fruta muito madura, penetravam as narinas e traziam recordações. Lembranças de não sei o quê. Então outro canto, um gorjeio, logo seguido por um trinado, depois um pio agudo, e o ar ainda escuro se encheu de cantos agitados e sons tranqüilos, as aves acordavam para o dia. Vinha o dia? Vinha o dia, era certo, mesmo sem nunca ter visto um dia sequer ele adivinhava que seria lindo. Seu primeiro dia de vida!Foi descendo em direção a um marulho de água corrente. O céu as suas costas, no leste, clareava e os olhos perceberam o córrego. Abaixou, levou as mãos em concha à água, lavou o rosto com força, mais uma vez, esfregando os olhos e sentindo o pinicar do frio na pele, passando as mãos molhadas no cabelo crespo e revolto e tirando com tapinhas a lama, uma folha e algumas pedrinhas que estavam na nuca, de ter ficado deitado. Encheu a boca de água, bochechou e cuspiu. Depois bebeu um gole grande, e outro, e mais outro. Levantou. As árvores já apareciam em cores cinzas. Pisou na areia do córrego e começou a lavar todo o corpo. Perdia o fôlego com a água gelada descendo por sua pele quante. A água que escorria de suas pernas era avermelhada como o barro que o recobria. Dando-se por satisfeito, arrepiado da água fria, com passos rápidos, atravessou o riozinho e caminhou no bosque nevoento até um areal onde se agachou e fez suas necessidades cobrindo-as depois. Ali, agachado, tentou lembrar se havia feito isso antes, parecia tão natural, mas não recordou o simples ato de aliviar seus intestinos. Tudo estava tão embolado em sua cabeça. Com certeza esta estranheza acontecia porque estava iniciando sua vida naquela manhã. No entanto, havia coisas pouco claras em sua mente: como conhecia as figuras formadas pelas estrelas, seus nomes e posições no céu e o que significavam para o homem? Se começava a viver naquela madrugada como conhecia tantas coisas? De onde vinham estas lembranças?Voltou pelo mesmo caminho e, de novo sob a grande árvore, ficou maravilhado com o espetáculo do aparecimento do Sol, fitou-o de soslaio e trancou as pálpebas com força mas o poderoso guardião do dia continuava ali, diante dele, mesmo com os olhos fechados, uma bola de fogo arroxeada. Olhando a ponta de seus dedos viu que ele também estava daquela cor: “Adão será meu nome pois sou roxo, moreno!”. Naturalmente ele queria dizer que o tom de sua pele se parecia com o começo do dia, os tons mais para o escuro. Ajoelhou-se e com as palmas das mãos para cima e a cabeça reclinada começou a recitar uma oração:“Pai, Deus que dá vida a tudo o que existe,Eu lhe agradeço por estar vivoE poder conhecer e usar todas as coisasQue o Senhor preparou para teu servo.Dá-me tua benção para este primeiro diaEntre todos os dias de minha vida.Sei que estou aqui com um propósito,Por isso peço que o Senhor me guieMostre-me o que tenho de fazer entre toda a Vossa criação.Faça de mim um instrumento, Senhor,Molde-me como a um jarro para um bom uso”.Abriu os olhos e se levantou. Teve uma tonteira e notou uma coisa nova, uma sensação má na barriga. Era fome, ainda não havia comido nada. “O que vou comer?” Não havia preocupação em sua pergunta, ele se sentia tranqüilo, protegido, uma infalível constatação de que era um filho e seria cuidado. Os pássaros fazendo alarido, toda aquela balbúrdia de sons, era sinal de que estavam se banqueteando, brincando e brigando, uns com os outros, por comida.Saiu caminhando naquela direção até que viu umas bolas marrom-amareladas pendentes de galhos finos e arqueados com beija-flores esvoaçando e sugando o suco adocicado das frutas. “Romãs!” Pegou uma delas, apertou com força, a casca rachou e apareceu a polpa, grãos brilhosos e rosados. Colocou uma porção na boca e mastigou com cuidado sugando o doce suco da fruta. Conhecia aquele gosto? Veio-lhe uma visão rápida de uma fonte d’água cercada por aqueles arbustos, mas só durou um átimo, sumiu. “De onde me vem os nomes? Como sei que esta fruta é uma romã?”A frente uma touceira de palmeiras estava carregada de flores amarelas em pencas, o chão coberto delas, as abelhas e marimbondos voejando em volta. “Tâmaras!” Mas elas ainda iam demorar a aparecer, crescer e ficar maduras. Viu, então, laranjeiras, arvoredos esparsos, altos, com uns 3 metros, antigos, mas com frutas redondas e amarelas. Correu para elas. Teve que subir em seus galhos, dobrá-los para pegar as frutas temporãs. Pegava, descascava com as unhas e chupava os gomos gostosos, alguns ressecados. “A fome faz tudo mais gostoso!” Satisfeito, saiu caminhando sem destino e pensando em sua condição de recém chegado a este mundo.“Sou o filho de Deus, o homem feito de barro, minha mãe é esta terra”. Agachou-se e esfarelou um torrão de terra. “Fui colocado aqui para cuidar de tudo o que o Pai fez para mim”. O Sol subia ainda bem no meio do céu. “É outono. O verão já passou e o frio do inverno vai chegar”. Havia no seu espírito várias perguntas sem respostas como: de onde lhe vinha este conhecimento das coisas, das frutas, das épocas e das estrelas?Precisava se organizar, ainda não tinha nada feito por suas próprias mãos. Sua primeira necessidade, imperiosa, foi construir um altar para fazer um sacrifício ao Deus criador. Em sua mente criou um quadro mental da obra que ia fazer: uma mesa feita de pedras onde possa repartir uma refeição com seu Pai, o Criador. Andou pela encosta apanhando pedras maiores que suas duas mãos e foi juntando-as e arrumando-as em forma quadrangular. Não foi um trabalho fácil nem rápido, primeiro porque primava por fazê-lo bem feito e depois porque depois de trazer para o lugar escolhido as pedras que estavam próximas as outras repousavam cada vez mais longe. Depois de fazer um monte bem grande dedicou-se ao trabalho de arumá-las na forma projetada. As pedras maiores eram equilibradas e presas com pedras menores, num serviço artesanal bem firme e de ângulos bem marcados. Na altura de sua cintura ele concluiu o trabalho com lajes de pedras chatas e largas. Estava feito o altar onde ofereceria a Deus dádivas que ele conseguisse produzir com seu próprio esforço. Tudo o que Adam trouxesse para aquela mesa seria objetos feitos por Deus e não podia ser diferente já que o Pai fez todas as coisas. Mas ele daria a Deus dádivas que tivessem trabalho próprio agregado. Além disso ele entendia que os alimentos que trouxesse àquela mesa, se queria agradar ao Único Deus, deviam ser seres vivos e com sangue, como ele mesmo, o filho único. Pensando assim, entendia que não poderia oferecer frutos, legumes e verduras ao Pai. No seu entender precisaria criar animais: caçá-los vivos, alimentá-los mantendo-os em abrigo, para, só então, cevados e acostumados com a presença do filho de Deus oferecê-los em sacrifício e ofertas a serem compartilhadas com o Pai.Rodeou devagar o cubo de pedra arrumando melhor uma rocha aqui outra ali. O dia estava adiantado e a tarde pelo meio quando ele foi ao córrego beber. Estava com muita sede, não parou o trabalho de construir o altar nem por um momento. Foi um sacrifício pessoal. Voltou às fruteiras aonde havia comido pela manhã e, entre o mato rasteiro, descobriu mais alimento: melões, alguns maduros, com certeza os últimos daquela safra. Colheu dois e levou para seu pouso debaixo da grande árvore onde abriu-os com uma pedra de quartzo com fio bem aguçado que havia encontrado durante a tarefa do dia. O doce mel das frutas foi recebido com prazer e agradecimento. Não era mais tempo dos melões, aqueles ali parece que foram guardados especialmente para ele, por seu Pai dos céus.Os braços e as costas estavam doendo do trabalho estafante e as mãos tinham algumas esfoladuras que ele lambeu com cuidado. Estendeu seu corpo sobre a grama e com a cabeça recostada numa raiz mais arredondada, admirou o anoitecer que chegava do leste e refletia. “Hoje eu nasci. Hoje fui formado por Deus, do barro arroxeado misturado com a água límpida do riacho. Fui feito como um boneco construído pelo artista. Quando Ele viu que eu estava pronto deu-me a vida. Soprou em meus narizes o seu ar divino, seu espírito. Sou um ser vivente. o mais hábil entre todos os seres que meu Pai fez”. O cansaço o venceu e Adão dormiu o sono pesado de um dia produtivo. O seu primeiro dia de vida.Seu segundo dia de vida começou igualmente cedo e ele identificou Nergal (Marte) o astro vermelho andando devagar, imponente como o grande guerreiro que era, em seu caminho pelo céu bem na “porta” da constelação de Aquário. “Preciso tomar mais cuidado em minhas decisões. O que escolher fazer hoje pensando ser bom pode resultar em mais trabalho para mim e muitas dificuldades. Marte em Aquário será sempre dificultoso pra mim ”. Ele não podia saber o que lhe aconteceria durante a caminhada do Sol por sua estrada real, assim tinha de ficar bem atento.
Ainda recostado na grama fez planos. Seu propósito neste novo dia seria começar a cuidar das plantas que lhe pudessem dar comida: frutos, grãos, raízes, folhas, caules. Faria um inventário do espaço em que vivia. “Como vou chamar esse lugar?” Refletiu um tempo e tentou: “Fonte de Alegria”, mas não lhe pareceu apropriado e por um bom tempo repassou vários nomes até decidir por “Jardim Prazeroso, porque aqui vou criar um jardim aonde vou me deleitar”. Levantou-se para as tarefas do dia.Depois de comer ele voltou ao riacho e procurou pedras pequenas, redondas e de cores diferentes. Deu-se, logo, conta de que precisava de uma bolsa para carregar suas coisas. Decidiu que as pedras translúcidas representariam os pés de romã, as amareladas as laranjeiras, as marrons seriam as tamareiras, as esverdeadas seriam para os melões. Pedrinhas malhadas de veios e as pretas indicariam outros alimentos que ele encontrasse. Não precisa guardar na memória os bens que existiam em seu jardim, as pedrinhas indicariam as espécies e a quantidade de cada. Saiu perambulando por seus domínios, pelo lugar que seria o “Jardim de Prazeres”. Ficou surpreso de encontrar macieiras e figueiras e trechos com muito girassol, e achou outra planta oleaginosa maravilhosa, a oliveira. Era mesmo uma terra abençoada esta que ele recebeu para viver. “Deus me preparou um lugar especial. Aqui tenho de tudo. Achei parreiras de uva e trepadeiras de maracujá subindo em arbustos. Não tenho pedrinhas com tantas cores quanto os tipos de plantas que servem de alimento que encontrei hoje. Encontrei até umas bolsas de que preciso muito, cabaças maduras, grandes e pequenas para guardar meus tesouros e poder levar muitas coisas de uma só vez”. Falava consigo mesmo sem se dar conta que estava sentido falta de outras pessoas com quem pudesse trocar idéias e falar de suas impressões. Ainda mais ele, que tinha como principal função ensinar e admoestar seus seguidores.
Ele cortou cipós com o seu sílex e fazendo furos nas cabaças pendurou-as aos ombros levando dentro da menor suas pedras que marcavam a quantidade de cada tipo de árvore frutífera e nas maiores os alimento maduros que encontrou e que levou para seu pouso para guardar. Quando chegou em baixo da grande árvore que o protegia do sereno da noite vinha com os braços carregados de coisas: bucha para se esfregar e pedras de sílex para confeccionar ferramentas. Nos ombros cabaças com água e com frutas: pêssegos temporões, laranjas, pepinos e nabos. Começava a ter uma dispensa bem abastecida.Andando atento às suas plantas ele só de leve percebeu a presença de animais. Pássaros havia muitos, tantos e de cores, formas e cantos diversos que, sempre muito organizado, pensou em um dia fazer uma relação deles. Répteis eram fáceis de ver tomando banho de sol nas pedras: lagartos de diversos tamanhos e cobras de todas as cores. Mas, mamíferos, não viu nenhum.Deitado ao entardecer, antes de aparecerem as primeiras estrelas, com as mãos sob a cabeça, pensou nos trabalhos do dia. “Quanta coisa boa meu Deus! Até pés de algodão eu encontrei! Não tenho roupas, mas ainda não está fazendo frio e me sinto bem assim, nu, como nasci. Mas vou ter de fazer roupas. O difícil será descaroçar o algodão, fiar e fazer o tecido. Isto é trabalho para uma mulher”. Falar em mulher foi uma constatação tão forte que ele se ergueu de chofre e ficou muito perturbado. “Uma mulher, uma fêmea para o homem, a companheira celestial, a Virgem formada por estrelas, a deusa Isthar (Vênus)”. Ficou assim, meditativo e sentado por um longo tempo. A primeira estrela reluziu no leste e ele se deitou novamente. “Não preciso de uma mulher se for só para fiar algodão, mas queria uma companheira para conversar e me ajudar”. E o sono pegou-o tão rápido, tão de surpresa, que ele jamais conseguiria lembrar a última palavra que disse antes de ficar inconsciente, nem percebeu quando uma sombra furtiva rodeou o tronco da árvore e pé ante pé chegou bem perto dele, farejou-o e quando um pássaro piou nos galhos altos, saiu em desabalada carreira.No terceiro dia, Adão, depois da oração e do desjejum, saiu para realizar outra intento. Procurar um lugar com argila apropriada para fazer uma tábua de registro, uma pequena prancheta retangular no qual desenharia seu plano de cultivar um jardim. Numa encosta perto do riacho, ao pé de sua colina, achou o material adequado. Encheu uma cabaça com barro e foi para o riacho umedece-lo e dar-lhe a forma apropriada. Acocorou-se a uma sombra desenhando figuras no barro macio com um pedaço de bambu que afiou com sua pedra de quartzo. Todas as suas idéias estavam prontas em sua cabeça e ele foi gravando-as no barro de modo que teria uma planta de tudo o que queria realizar naquele pedaço de terra. Tinha plena certeza de que as conseguiria realizar, de um modo como se já tivesse feito um projeto assim antes. O altar, a tábua de barro, as cabaças amarradas com cipós finos bem escolhidos e as pedras lascadas como facas ele as construiu com facilidade, concretizava suas idéias sem precisar de tentativas mal sucedidas e executando-as com presteza. “Naturalmente sou herdeiro de meu Pai, de sua sabedoria sem princípio nem fim. Eu consigo fazer tudo o que me apraz com bastante facilidade. Herdei do Criador toda sua capacidade de idealizar e criar”. Olhando uma dália com suas múltiplas pétalas coloridas entendeu como Deus fez com perfeição tudo o que idealizou. Como de Suas mãos saiu o trigo e o inhame, um cedro altaneiro e uma grama fofa que recobre o chão. Uma idéia é um objeto pronto no mundo celestial e pelo poder, pelo espírito divino ela se tornava real no mundo terreno. Terminado o desenho colocou a tabuinha no sol pra secar. Ficou um pouco a sombra, longe da luz forte do sol e depois saiu andando.Foi cuidar das laranjeiras. Quebrando galhos secos arejava a planta com cuidado, pois novas flores perfumadas já brotavam de seus galhos. Então, teve a sensação de que estava sendo observado. Voltou-se devagar e viu, entre uma touceira de capim cidreira um cão. Era forte, tinha os pés grandes, o focinho era bem pronunciado, as orelhas em pé, atentas, viravam para todos os lados sondando se havia ali algum perigo. Adam se ajoelhou e estendeu a mão, chamando baixo: “Vem aqui, vem! Venha cá!” O animal branco com manchas pretas vigiava o homem, mas estava curioso ou sentia falta de afeto de um humano. Ficaram naquele impasse por alguns minutos e Adão resolveu deixar o cão decidir se ficava ou ia. No coração queria muito uma companhia, alguém que lhe ouvisse, que escutasse seus pensamentos em voz alta. Continuou seu trabalho, arrancando capins que estavam em volta das laranjeiras e fazendo um tapete com eles em volta dos troncos, para refrescar a terra. Foi para as macieiras e depois para as figueiras repetindo o mesmo serviço. Era a capacidade do ser humano de melhorar a ação da natureza. Vez por outra olhava e via o cão deitado preguiçoso, a cabeça entre as patas olhando sem muito interesse o que o homem estava fazendo. Adão viu um mamão maduro e sacudiu o pé com cuidado até a fruta se despregar, pegando-a no ar. Abriu-a com as mãos, comeu a carne macia sujando o nariz e o rosto e, vendo o interesse do bicho, pegou um bocado e atirou para o cão que de um salto abocanhou-o antes que caísse no chão. Estava selada uma amizade, um companheirismo. Mais tarde foi recolher a tabuinha seca, dura como pedra, com o desenho nítido de seu plano para suas terras, o Jardim de Prazer. O cão o seguia. Nunca esteve sozinho nestes poucos dias em que estava vivo, seu Pai o acompanhava por onde ele andava, mas era bom ter um ser vivo por perto.2º CAPÍTULO – O AMIGO INVISÍVELDizem que ao meio-dia, assim como em outros quatro momentos do dia, há uma ligação forte entre o mundo terreno dos homens e o mundo dos espíritos. Então, quando estava descansando de sua refeição, o cão começou a latir. O pelo do cachaço ficou arrepiado, os dentes à mostra denotavam ferocidade, enquanto latia e gania para o alto da grande árvore. Adão se levantou e começou a procurar alguém nos altos galhos, viu o que parecia uma forma, uma sombra numa forquilha e ficou rodeando o tronco de olhos pregados naquele ponto. Tropeçou num buraco, mas continuava olhando pra cima enquanto o cão, desatinado, latia com fúria. De um outro ângulo percebeu que só havia os galhos e um emaranhado de folhas que davam a falsa impressão de alguém trepado na árvore. Então ouviu uma voz. “Quem és?“ Vinha de cima..., ou seria de trás? Ele rodopiou sem ver coisa alguma. Ficou numa posição de defesa com o cão rosnando em volta, mas não aconteceu mais nada. Depois de algum tempo ele se sentou meio cansado do susto. O animal deitou bem perto e ele colocou as mãos no seu dorso, sentindo o pelo fofo e áspero. Foi o primeiro contato físico do homem e do cão, uma aproximação provocada por aquele encontro inusitado.Alisando o animal ele pensava no que havia no mundo. “Deus, criastes todas as coisas. O céu repleto de estrelas e a Terra com sua fartura de plantas, peixes, pássaros e animais. Tudo isto foi feito para o homem, Vosso filho. Eu fui criado por Vós do barro, do mesmo barro com que fiz a tábua de desenhar figuras. Misturastes com água, como eu fiz, e com seu poder, que não possuo, a vida foi instilada em meu corpo pelo Vosso sopro divino. Agora, o Senhor quer conversar com Vosso filho. Nunca mais vou ficar assustado quando ouvir a Vossa voz. Vou prestar atenção a ela e aprender com Vossas palavras”. Nuvens espalhadas planavam no céu muito azul e raros urubus brincavam de se perseguir. O cão o olhava com grandes olhos amarelados, o focinho úmido e o rabo abanando satisfeito. Levantaram-se ao mesmo tempo e foram caminhando, o homem ia com uma intenção no coração, fazer o fogo.Voltou ao riacho, desta vez para procurar pedras redondas e amareladas, que coubessem na mão e que fossem capazes de produzir faísca. Alguma coisa lhe dizia que ia precisar daquela maravilhosa dádiva de Deus que conhecia não sabia como. Achou uma, mas nenhuma outra que pegava era apropriada ou da forma mais fácil de provocar atrito. Foi vadeando o rio em direção ao sul, onde sua correnteza crescia abastecida por afluentes e encontrou várias pedras. Experimentou-as atritando uma na outra até encontrar as que produziam mais faíscas e que tinham formas mais adaptáveis as suas mãos. Colocou-as numa cabaça grande. Uma fruta grande como uma abóbora, mas de casca muito dura, que ele havia cortado na sua parte mais larga formando uma bacia em que fez 3 furos bem separados e perto da borda aos quais amarrou embiras - fibras longas que tirou da entrecasca do caule da amoreira - para servir de alças. Aquele artefato era muito útil pois podia carregar nele coisas que achava em suas andanças e que lhe tinham serventia. Tanto podia carregar o embornal pendurado ao ombro como na ponta de uma vara que levava apoiada no ombro, mantendo-o afastado do corpo.A volta ao abrigo debaixo da grande árvore demorou mais pois tanto apanhou e comeu frutas e batatas pelo caminho, como juntou galhos secos e gravetos que amarrou num feixe. Estava excitado com a perspectiva de fazer o fogo, como Deus havia feito o Sol. Pendurou a bacia com frutas num galho baixo e pegando duas pedras e o feixe de gravetos dirigiu-se ao altar na parte norte da colina, junto a uma pedreira de granito negro. Procurou capim seco e fez um montinho que cercou de alguns gravetos em pé, uns apoiados nos outros, em forma de cone. Depois com cuidado atritou as pedras bem por cima da tripeça com cuidado para não derrubar os galhinhos. As faíscas saltavam a todo o instante, mas custaram a cair no capim e mais ainda a atear-lhe fogo. Mas, de repente, uma minúscula labareda apareceu, lambeu de um lado e outro, atiçada pela brisa leve. Ele aproximou o rosto da pequena chama e soprou com cuidado até que o fogo pegou firme e cresceu gerando um calor que queimou os gravetos. Alimentou-o com mais mato e galhos seco e o fogo vibrou firme aquecendo-lhe as mãos enquanto o cão, com as patas dianteiras apoiada na beira do altar olhava assustado o que o homem havia feito com seu poder. Queimou uma porção de erva-verde e açafrão produzindo um aroma bom e fez uma oração contrita a Seu guardião no céu. Ele deixou a ponta de galhos mais grossos na beira das chamas e depois que estavam em brasa levou-os para perto da grande árvore e fez outra fogueira que durasse muitas horas.Deitou-se e desta vez o sono demorou a vir. Havia o cão deitado aos seus pés, o fogo crepitando e a lembrança aflitiva da voz de Deus que lhe interrogara: “Quem é você?” Isto suscitava uma questão: “Deus me fez, sou Seu filho, ele me conhece bem. Sim, sou uma idéia, um pensamento dEle que se tornou real. Ele sabe quem sou desde antes de me formar. Então por que perguntou: ‘Quem é você?’ Ou não foi meu Pai quem falou comigo? Sefoiassim, quem é este alguém que não me conhece? “ Este pensamento ficou rodeando-lhe a cabeça até que o sono o venceu.Acordar no dia seguinte foi diferente. O hálito quente do cão aquecia seu rosto frio. “Oi, bom dia! Essa noite está mais fria. Tenho que arranjar uma coberta, e logo. Espere (o cão subia na sua barriga). Tenho que fazer uma coisa antes (e se ajoelhou): "Senhor do céu, eu te agradeço por estar vivo.Agora tenho mais um bem para te agradecer,A amizade deste animal.Obrigado por tantos alimentos que o Senhor fez para mim.Há muito tempo o Senhor me conhece.Eu te agradeço, Pai”.Depois de comerem, ainda escuro, as estrelas brilhando sem que ele lhes desse atenção, foram procurar uma coberta para o homem. Agora ele tinha com quem falar: “Você já tem uma boa vestimenta, este pelo e este couro grosso, não seria má idéia eu arranjar a mesma coisa para mim, agora,que o frio vai chegar”. Seguiram o riacho em direção ao sul. “Assim como eu procuro o rio par beber os animais também precisam matar a sede em suas águas. Vou encontrar meu couro por aqui”. Há uns 6kms, o dia amanhecendo, encontraram um remanso largo e saíram procurando em volta. Para o sul uma cordilheira de montanhas demarcava linha do horizonte encostando nas nuvens. O cão sentiu um cheiro e saiu desabalado seguido pelo homem, o que os levou a uma carcaça fresca, alguns animais saciados afastaram-se rápido. O homem, pela segunda vez naquele dia, ajoelhou-se e agradeceu mais aquela dádiva e logo espantou os carnívoros e se dedicou ao trabalho de conseguir o couro de sua vestimenta. Tirou pedras de sílex da sua algibeira de cabaça e começou a cortar separando a carne do couro. Com o serviço pela metade, juntou gravetos e capim seco e batendo suas pederneiras atiçou um fogo e colocou um pedaço da carne de um antílope espetado num pau sobre o braseiro. Lavou-se e tomou banho no remanso brincando com o cão e voltou logo para a carcaça que de atraia carnívoros e abutres que não se aproximaram mais por causa do fogo que ele alastrou em volta. Comeu de pé enquanto o cão rosnava e investia contra os outros bichos e ele brandia um pau intimidando-os. Arrematou o trabalho com muitos gritos e pedradas e foi embora carregando o pesado couro nas costas.Chegou tarde em seu acampamento. Colocou o couro no alto da árvore acendeu o fogo bem próximo ao tronco e ele e o cão dormiram horas inquietas com animais rosnando e latindo em volta. No dia seguinte fez uma armação com galhos e fibras onde prendeu o couro bem esticado deixando-o ao sol para secar. Naquele dia só saiu de baixo da árvore para urinar ou defecar sempre mantendo sua futura coberta à vista. Neste dia aconteceu um fato importante, o homem deu um nome ao animal: “Você é Corisco, (o cão o olhava de um jeito curioso e atento) porque é rápido como o raio. Eu sou Adão, porque fui feito do barro arroxeado e sou moreno”. Desde então o homem passou a dar nomes aos animais que criavam uma relação duradoura com ele. Como o falcão Viração que ele encontrou com a asa machucada e salvou dos dentes de Corisco e, com certeza de algum outro bicho, e que ficou morando empoleirado num galho da grande árvore e o pequeno cabrito, Malhado, que ficou com eles pouco tempo, só até engordar um pouco, coitado!Mas esse dia ficou marcado por outra visita do “amigo invisível”, como o homem passou a chamá-lo. Era bem tarde, ele dormia cansado por causa da noite anterior que foi quase insone. Devia ser metade da noite quando a voz tornou a troar: “Quem és?, eu estou aqui”. Ele escutou isso no seu sonho, mas não soube dizer depois se foi isto que o acordou ou os gemidos de Corisco que andava em volta olhando para o alto. O homem se pôs em pé. “Quem é que está me chamando?” Disse isso em voz alta e respeitosa. Silêncio..., e os barulhos da noite, aumentados por causa do sangue que martelava nos seus ouvidos faziam parecer que estava acontecendo uma balbúrdia naquele projeto de jardim. Até as estrelas pareciam crepitar. Ou era a fogueira. Ele estava desnorteado. Lembrou-se, não sabia de onde, que as vozes não devem ser temidas nem enxotadas, mas ouvidas, respondidas e interrogadas. Então respondeu quase gritando: “Eu sou Adão, o filho de Deus”. Ficou quieto, o cão sentou-se ao seu lado de orelhas atentas a todos os barulhos. Depois de um longo momento queito tornou a falar: “E você, quem é? Quem é que fala comigo?” Seguiu-se outro silêncio, este parecia interminável. Ele acabou se sentando, ainda ofegante, de cabeça baixa.Ribombou um trovão, mas era a reverberação de uma voz poderosa. “Meu nome não pode ser conhecido, mas fui enviado para te revelar a sabedoria”. Adão tinha caído de bruços e com as mãos sobre a cabeça ouvia e tremia; Corisco, de rabo entre as pernas tinha o focinho enfiado entre as patas dianteiras. Com os minutos passando o homem se recompôs pensando que não podia agir como o cão e ousou interrogar: “O Senhor é Deus?” Alguns instantes se passaram e de novo a voz tonitroou: “Não, eu vim a mando do Senhor Deus. Sou um servo dEle”. A resposta lhe deu confiança e ele continuou: "Mas existem outros deuses?” “Estás aqui por que acreditas num só Deus. Mas Ele é um grande Chefe, um grande Rei e tem miríades de servos. Como as estrelas que vês no céu”. Lhe ocorreu inquiriri sobre sua missão neste lugar: “Eu estou aqui para governar o mundo visível?” A voz não demorou muito a explicar: “Estas aqui como um ser separado para um propósito. Mas nunca serás governador do mundo, nem de qualquer lugar do mundo”. Adão ficou sem o que dizer e a voz não falou mais nada naquela noite. O sono demorou vir e quando chegou lhe caiu pesado como uma porta que é batida sem a gente esperar.


CAPÍTULO IV – A ESCAVAÇÃO


Enquanto tomava o café da manhã, protegido por uma rede de filó das miríades de moscas que pousavam nas comidas, nos olhos, na boca dos seres humanos e dos animais, tive tempo de conversar um pouco com meu amigo que e colocou limites para o trabalho que poderia fazer junto deles.
- Nossa licença é para trabalhar nos limites do que restou da pirâmide de Sekhemkhet, também desenhada por Imotep e que teria 120m em cada lado da base e uma altura de 70m, mas que por não ter sido concluída desmoronou e o material foi usado em outras pirâmides.
- Também chamada de Pirâmide Enterrada e construída por volta de 2600 aC para o filho do faraó Djoser. Parece que teria sete degraus ou 70m de altura, se fosse completada. O nome do faraó Sekhemkhet foi encontrado gravado em restos de jarros no subterrâneo da pirâmide.
- Exato. Bem, estes são os nossos limites de atuação. O entorno desta construção. Não se pode sair escavando por aí. Este complexo é muito visitado e tem muitos funcionários do governo que vão estar de olho na gente.
- Reparei. (mesmo num dia de semana e àquela hora da manhã tinha turista de muitos lugares trazidos por dois ônibus e uns quatro micro-ônibus).
- É o que lhe disse. O que já foi descoberto neste sítio em que vamos trabalhar, é que sob a pirâmide que não existe, há corredores que levam à muitas câmaras e à um sarcófago que ao ser descoberto não tinha nenhuma múmia, nem sinal de que tivesse tido alguma ali. O lugar não foi mais pesquisado exatamente porque os estudiosos chegaram à conclusão de que esta foi uma construção não terminada e que nunca foi usada. Estamos aqui para tirar a limpo esta hipótese e outras. Aliás, o conceito atual é de que essas antigas pirâmides não eram para servir como túmulo, mas só como memorial, um monumento. Não vá esperando ver figuras e hieróglifos, não há nenhum. Eles só apareceram nas pirâmides posteriores. É bom saber que os corredores onde vamos entrar têm a segunda mais forte radiação entre todas as pirâmides, mas tanto não causou nenhum dano aos exploradores anteriores como não é proveniente de nenhuma maldição, mas de razões naturais, talvez por causa da geologia do lugar, entende? Você é tão místico!
- Certo. E há algum fato novo para você ter convencido as autoridades a lhe dar dinheiro e licença para escavar?
- Há. Um professor traduziu num papiro indicações de que utensílios das esposas do faraó e dele próprio já estavam em câmaras que foram seladas até o enterro do faraó. - Caramba! Quem sabe não há uma biblioteca aqui?
- Não fique muito alegre, meu amigo, as senhoras daquele tempo não eram de muita leitura. Vai ser difícil você achar tábuas de argila, mais difícil ainda do tempo e da região longínqua dos sumérios e, pelas probabilidades, impossível de você encontrar a História de Adão que Moisés usou para começar a Bíblia. Sabe do velho lema estudantil, hem? “Se o estupro é inevitável, relaxe e goze”. Agora vamos indo que o tempo voa, mesmo neste cemitério que tem quase 5.000 anos.
Levantamos e fomos ao encontro dos estudantes e operários. Com as plantas do local na mão e um aparelho GTS encontraram rapidamente a entrada coberta pela areia que escoava, voava e entranhava tudo, como uma água, como um fluido muito difícil de conter. Cada pá de areia retirada era logo ocupada por outro tanto de areia que escoava dos lados. Tinha-se de colocar tábuas e escorá-las, tirar a areia, colocar outras tábuas abaixo daquelas e ir descendo assim, não sem constantes incidentes: uma tábua rachava ou uma estaca de escora quebrava e a areia corria toda para dentro. O sol era inclemente, as moscas atormentavam, a secura da garganta era terrível. A toda hora tínhamos de parar para beber água ou descansar. Se bem que eu e Abdul não pegássemos numa pá, só raramente, ficávamos por ali, andando, dando ordens, medindo e verificando e passando pelos mesmos sofrimentos. Depois do almoço vimos que tínhamos avançado muito pouco.
De novo, à noite, bebemos e conversamos. O assunto girando – e só girava, não levava a lugar algum – sobre a política de George W Bush.
- E você gosta do homem! Deve gostar, você é lá de perto da terra dele, do Texas!
- E você deve ser “fã de carteirinha” de Sadam Hussein e do Bin Laden! Afinal, são árabes, também.
- A invasão do Afeganistão eu aceitei. Acho a religião Shiita um fascismo. Então sou contra. E a ousadia de invadir um país e derrubar dois prédios cheios de gente não podia ficar sem um troco. Nisto eu estava com Bush.
- As torres de Nova Iorque já eram um ícone para nós. Se o Empire State fosse derrubado eu acho que não teria provocado tanta comoção.
- Agora, o Iraque, foi demais!
- O que se sabia nos Estados Unidos era que o homem estava produzindo gases tóxicos e armas de vírus, talvez mesmo uma arma nuclear. O que ele fazia com os curdos, cara, era genocídio. A ONU já devia ter mandado tropas para lá muito tempo antes.
- Certo, certo. Mas não tinha “armas de destruição em massa” nenhuma, Adam! Mas tem muito petróleo... (Abdul pegava uns amendoins numa vasilha que os serviçais tinham colocado na mesa, o que aumentava a sede e nos fazia bebermais cerveja)
- Lá vem você com petróleo. Isto é uma visão simplista, meu chapa!
- Interesses tinham, você não pode negar. E a afronta ao papai! (aí ele falou cheio de trejeitos).
- Seu fdp! Não tem nada a ver a invasão do Bush pai com a do filho. Abdul, você não compreende. Os EUA e a ONU tinham ordenado um embargo ao Iraque. Tudo racionado, com um governo de merda cheio de parentes do homem tomando conta de tudo, era uma roubalheira só, um mercado negro que enchia os bolsos da família Husseim. O povo não agüentava mais viver aquela vida de exceção! Tinha que se fazer alguma coisa, você não concorda?
- Bem, os EUA podiam ter pedido, por favor, a Sadam para ele se mandar com a grana que já tinha embolsado! (e riu balançando o copo, que não era mais de cerveja mas com Absinto, quase entornando o líquido verde maravilhoso)
- Sacanagem, não. Então vamos falar de coisas sérias.
- Como o que, mulheres?
- Não, homens.
- Menino, você é chegado!
- Para com isso. (Adam se levantou e andou sob o céu estrelado) Esse lugar me impressiona, me faz pensar em deuses, espíritos e criaturas do passado.
- Coisa de neófito. Eu que lido com esta terra desde que nasci, encaro tudo isso com tanta indiferença quanto o cirurgião que tira um tumor horrível da barriga do paciente enquanto da mordidas num xisburgue que a enfermeira segura para ele.
- Abdul, sempre existiu os pensadores do contra. Partindo da idéia de que Deus não existe foram ajuntando provas de que gerações selecionadas pela natureza formou tudo o que temos por pura necessidade e agora dizem que o próprio homem pode formar seres diferentes dos que encontramos aqui quando surgimos.
- Darwin era religioso meu amigo, Mendel até era frade! Eles acreditavam que Deus criou os morcegos que estão voando aos montes aí fora na noite e o carneiro que pela manhã vemos pastando uma grama que parece que só eles vêem. E foram esses homens crentes que lançaram as teorias da seleção natural e das mutações que eram feitas pelas radiações de nosso deus Sol e que agora são realizadas em laboratórios acéticos e chamamos de transgênicos.
- E você sabe quanto tempo Darwin e Mendel demoraram em publicar suas idéias que pareciam jogar no chão toda fé que possuíam de que não somos resultado de alguma interação caótica entre cadeias de moléculas de carbono, nitrogênio e oxigênio e os raios invisíveis emitidos pelo Sol?
- E agora, sabendo tudo isso, você quer ressuscitar o esqueleto criacionista provando que o primeiro homem foi Adão, feito de barro por Javé.
- Cara, não sei porque ainda perco meu tempo falando contigo. Este “homem fictício” (Adam fez o sinal de aspas) foi o primeiro a compreender um conceito muito difícil, o monoteísmo. São exatamente os registros feitos por ele sobre um Deus único que fez o céu e a terra que eu estou procurando.
- Ora, isto é uma reviravolta histórica, Adam. Acho que todos os historiadores acreditam que foi um rei em minha terra, o faraó Amenófilis IV – seu nome significa Amon está contente, sabe? – e que reinava em Tebas, aqui perto, o primeiro a compreender um Deus superior. Talvez essa compreensão não tenha partido dele mesmo, mas fosse uma influência de algum sacerdote aproveitada por ele por questões políticas, para desestabilizar a hierarquia religiosa egípcia que mandava e desmandavas nos reis. O fato é que ele criou leis afirmando que Deus é um só, e que todos os outros deuses eram auxiliadores dEle, assim como os santos de vocês. (Adam se inclinou para frente muito interessado no que o outro sabia).
- Isso foi por volta de 1.500 a.C, não foi? Na época de Moisés?
- Ele pertenceu a XVIII Dinastia, ou a que fundou o Novo Império. Um século e meio antes de Moisés, por volta de 1376. Dez anos depois em testemunho de sua conversão a nova religião monoteísta ele mudou de nome e ficou conhecido como Amen’hotep. Para ser mais exato, o novo conceito começou na escola de sacerdotes de Heliópolis no tempo do pai dele. O Deus único chamava-se Áton e relegou o velho pai dos deuses, Amon, para segundo plano. Mas o monoteísmo egípcio foi uma experiência efêmera, não durou 40 anos. O rei foi morto e a religião de Áton perseguida pelos sacerdotes de Amon até sua extinção. Agora você fala de uma experiência monoteísta ocorrida no fim do 4º milênio a.C.!
- Talvez algumas décadas antes, no início do 5º milênio! Bem, está ficando tarde, vou dormir.
- Bem dito. (falou se levantando) Estou todo moído e preciso descansar para o trabalho duro desde cedo. Não vou descansar, amanhã, até chegar no corredor da pirâmide de Sekhemkhet (bocejando entrou na tenda e fui atrás dele).
- Afinal, quem está pra chegar?
- Nosso amigo Ricardo Fernandez!
- É mesmo?! Muito bom! Ele é um amigão!
- Também gosto dele. E ele me inspira, sabe? Vendo trabalhar mais empolgado de que eu e com desvantagem me anima. Ele vem por conta própria, pelo menos não me falou de nenhuma instituição que o esteja financiando. Bem, vou dormir. Suma daqui!
O sol estava a pino quando chegamos ao alçapão que os anteriores exploradores deixaram para que a areia não tomasse conta de tudo lá embaixo, novamente. Quando entramos no corredor, Abdul na frente seguido por mim e pelos estudantes, iluminávamos o caminho com lanternas presas aos capacetes. De cara sentimos o bafio do ar aprisionado por muito tempo. O cheiro dava um medo que fazia o corpo se arrepiar porque era mais do que o fedor de ambiente fechado por muitos séculos, era também um cheiro que lembrava panos velhos, doença e morte. Fomos descendo o corredor que se aprofundava na terra. Quando os construtores começaram a obra os planos eram de descer 12m em uma rampa e nivelar, mas mudaram de idéia, taparam tudo com pedras até a profundidade de 6m e recomeçaram o túnel neste novo nível. Se foi porque toparam com uma rocha que não tinham capacidade de cortar ou porque os cálculos indicavam que desta forma era o melhor não se tem meios de saber.
Descemos por 12m e chegamos a uma câmara com um pé direito bem alto. Ali foi construído um arco com 4m de altura e atravessando-o continuamos a descer com o teto se mantendo nesta altura. Bem adiante encontramos um respiradouro ascendente com mais de 2m de lado e que ia sair no patamar do segundo degrau, fora da pirâmide. Serviria para baixar as portas de pedra que bloqueariam o resto do corredor até a câmara mortuária depois do sepultamento do faraó. Nunca foi usado para este fim, e talvez tivesse outras finalidades.
Estávamos indo na direção sul, mas neste ponto, bem debaixo do respiradouro há um umbral que segue para o oeste, resolvemos entrar nele já com o ar ficando difícil de respirar. O túnel continuava por dezenas de metros e dava num beco sem saída, mas bem antes do meio dele saia outro caminho para o sul que dava em um corredor transversal. Avançando para a direita encontramos outro corredor em direção ao sul, bem comprido e com vários quartos. Olhamos tudo com muita curiosidade, mas estavam vazios. Voltando pelo mesmo caminho até o corredor transversal andamos para leste passamos pela tumba funerária e seguimos até encontrar outro corredor paralelo ao anterior também cheio de cômodos que parecia terem sido feitos para servir como depósitos ou quartos. Tinham tamanhos diferentes e assim as portas não ficavam uma diante da outra. Não dá pra entender o propósito daquela disposição irregular e meio caótica no meio de uma construção que parecia ser toda bem planejada. Quando encontramos os primeiros cômodos todo mundo queria ver ao mesmo tempo, curiosos por achar algo maravilhosos e que ninguém tinha percebido antes. Depois o interesse foi acabando, afinal eram 132 cubículos sem nada, vazios e sem graça. Aquele lugar fechado começava a me dar nos nervos.
- Abdul, gosto de entrar em cavernas, especialmente as de teto alto, com salões amplos. Mas parece que depois de uma hora dentro do subterrâneo começo a ficar com ansiedade. Estou suando e com o coração disparado.
- Você é fresco mesmo! Cara, posso ficar um dia inteiro debaixo da terra que não me dá nos nervos. E por aqui é muito comum os túneis sob os alicerces das construções egípcias. Então, se você vai trabalhar num serviço minucioso como é o nosso não dá pra ficar saindo de hora em hora para respirar o ar puro lá fora.
- Não estou dizendo que vou morrer do coração. Só estou te contando como me sinto num lugar fechado assim por muito tempo.
- Eu me amarro. Já fui até o norte da Espanha para fazer espeleografia nas cavernas bascas! Muito legal. É uma mistura de alpinismo, escalada e raft. Adrenalina pura!
Depois de visitarmos todos os cômodos voltamos pelo corredor transversal até o corredor principal que descia um pouco mais até a câmara funerária com o sarcófago de alabastro que, segundo os primeiros exploradores modernos a chegar ali, nunca foi usado, nunca conteve nenhuma múmia. Um aluno tirava fotos sob indicação de Abdul, outros enchiam frascos com materiais que seriam analisados em laboratório e, uma moça e seu irmão, tiravam medidas de pontos indicados pelo professor. A câmara tem 9m de comprimento, 5m de largura e a mesma altura. Abdul explicou o trabalho que eles só iriam realizar no dia seguinte. Usando um caro aparelho de sonar portátil tentariam “ver” por trás das paredes. Também realizariam uma auscultação manual batendo nas pedras com um martelo e usando um sensível aparelho que media as vibrações o que indicaria algum espaço vazio por trás. Deram o trabalho por terminado e já iam saindo em grupo, sem a ordenação hierárquica da entrada, quando a luz que vinha do início do corredor foi obscurecida. Olhamos todos meio sobressaltados.
Dois funcionários do governo se apresentaram com uma pompa digna de um faraó visitando sua tumba em construção. Olharam tudo sem disfarçar que procuravam alguma grafitagem feita pelos estudantes, restos de garrafas e camisinhas (provas de uma orgia) e sem respeito a uma propriedade da nação. Como não viram nada disso não se demoraram e foram embora, não sem antes relembrar obrigações e direitos dos representantes da universidade. Por trás todos se despediram alegremente abanando as mãos, não que dessem adeus, mas fazendo sinais de vtnc, de cornos de motoqueiros e dando “bananas” bem dadas. À noite todos tomaram cervejas, juntos. Não havia menores e mesmo a bela e quieta Vera, da Líbia, tomou várias garrafas conversando animada sob a vigilância descansada do irmão Mohamar. Fora Adam eram todos árabes, mas muçulmanos sem convicção e as bebidas alcoólicas chegaram bem escondidas no meio da bagagem. E, afinal, estavam no Egito e não no Oriente Médio. Lá, dificilmente, o americano conseguiria um trago.
Faróis brilharam se aproximando de nosso acampamento e do utilitário saiu de um salto nosso antigo colega. Levantamos animados e tomei a dianteira abraçando Rodrigo com estardalhaço. Num instante estávamos os três com as mãos nos ombros uns dos outros falando atropeladamente. O motorista deixou a bagagem no chão, o moço acertou o que haviam combinado e arrastamos as malas e pacotes para minha tenda. As estrelas deslizaram pelo céu, muitas desapareceram no Leste e outras tantas surgiram no Oeste antes do cansaço nos vencer e irmos todos dormir.
No dia seguinte (droga!) tinha um burro caído dentro do buraco da entrada com uma perna quebrada e com tábuas soltas e muita areia quase o cobrindo. O animal teve de ser sacrificado, tirado com roldanas (os apoios quebraram duas vezes!), as tábuas recolocadas e a areia retirada. O único momento engraçado foi quando Abdul chegou correndo e viu o estrago: caiu de joelhos na areia e agarrando o capacete na cabeça, mesmo sendo ateu convicto, clamou por Alá, Rá e Maomé que o estavam castigando por seus delitos. Virei às costas à cena e ri baixinho.
Afastei-me com Fernandez conversando sobre as dificuldades inerentes a nossa profissão.
- Dormiu bem? Esta mudança de ares e de fuso horário deve ter atrapalhado seu sono.
- Adam, o problema é outro, sofro de rinite crônica, cara. Tem idéia de como é esta alergia?
- Quando era mais novo sofri de nariz entupido, mas depois passou.
- O meu não passa. De noite sinto como se as narinas estivessem fechando e vai piorando até que toda a garganta parece tapada. Uso um spray que dá um alívio, mas uma hora depois estou acordando de novo. Tenho de ficar sentado na cama, é uma droga.
- É uma alergia, não é?
- É, as células da mucosa do nariz tem uns receptores que não agüentam poeira, pólen e fungos.
- Então você vai se dar mal por aqui com tanta poeira.
- Meu médico disse que não. Sou alérgico a poeira doméstica que tem proteínas de ácaros que vivem dentro de casa. Ele me animou dizendo que a poeira do deserto é asséptica e que a baixa umidade por aqui vai ser ótima pra mim. A primeira noite não me animou nada, mais quem sabe vou dormir melhor logo mais?
-Tomara. (e mudando de assunto expliquei meu propósito naquela escavação). Depois de me ouvir sem nada dizer Ricardo tentou me mostrar seu ponto de vista:
- Eu acredito que o homem Adão seja um personagem histórico. Dois grandes povos - judeus e árabes - o têm como seu patriarca, como o primordial antepassado, então é impensável que ele seja só uma lenda e não tenha existido mesmo. Mas esta tese que você está desenvolvendo neste romance ou ensaio, de que ele realmente se achava o primeiro homem, que era desmemoriado, me parece sem razão. Pra quê isso?
- Ainda não te disse mas parti de dois conceitos. O primeiro é de que as referências à Adão no livro de Gênesis foram copiadas por Moisés - a tradição é de que foi ele quem escreveu este livro e os outros quatro do Pentateuco...
- Sei disso e conheço os argumentos de alguns críticos que apontam escritores em tempos posteriores como os verdadeiros autores.
Faço uma cara de poucos amigos, demonstrando que interrupções não são bem vindas: - Quem escreveu Gênesis compilou as primeiras histórias de documentos antigos, provavelmente escritos em tábuas de barro com grafia cuneiforme. Segundo, estes documentos têm como títulos: "Uma História do Céu e da terra" e "A História de Adão"...
- Que podem ter sido escritos por muitas outras pessoas que não Adão.
Não adiantava nem torcer o nariz, continuei falando: - Quem tenha escrito falava de Adão como o primeiro homem, num tempo em que aquela região da atual Turquia já era habitada por muitos seres humanos que dominavam a confecção de tecidos, a produção do vinho e a construção de ferramentas e armas, entre outras coisas, e onde já existiam grandes cidades.
- A defesa da proeminência de um povo sobre os outros é capaz de produzir coisas incríveis, até dizer que seu primeiro antepassado foi o primeiro humano.
- Meu camarada, quem contasse uma história com esta finalidade estaria afirmando que os povos que ele achava inferior ao seu na realidade tinham o mesmo antepassado, se Adão foi o primeiro homem.
- Aí você me pegou.
- Pois é. O personagem Adão, tenha sido descrito pelo próprio ou por outro, se achava o primeiro homem. Como é que ele chegou a idade adulta desconhecendo a existência de outras pessoas? Até a mulher que surgiu diante dele não tinha outra origem percebível para Adão ou o criador de seu personagem que não a de ter saído de dentro dele mesmo. Uma tal isenção de consciência só pode ser explicada por um motivo religioso ou nacionalista fanático ou por uma razão física mental. O personagem Adão não sabia da existência de mais ninguém de sua espécie na Terra.
- Adam, só posso desejar que você tenha sucesso em desenvolver esta história. É uma versão do que aconteceu há seis mil anos atrás. Vou ler os capítulos...
- Tenho que ver se depois de suas críticas eu ainda vou querer que você leia meu trabalho. - levanto, dou um abraço no amigo antigo e torno a me sentar - Veja bem que neste livro vou destacar aquilo que estou procurando em minhas pesquisas arqueológicas: o homem daquela época, 4.000 anos a.C, desenvolveu a escrita. Assim, o próprio Adão poderia ser o autor dos dois primeiros documentos da Bíblia. O estudo detido do que ele escreveu naquele tempo pode ser uma pista para entender sua convicção de que era um filho especial de Deus, com uma missão para executar na Terra, e o que o fez fracassar no seu ideal.
- O que a gente aprende cientificamente é que cada conquista humana aconteceu motivada por uma necessidade. Será que o ser humano daquela época precisava escrever?
- Se Adão estivesse começando sua vida naquele momento, exatamente como no período em que a espécie humana surgiu neste planeta, com muito pouca informação, bastava o registro no cérebro e a transmissão oral para as novas gerações.
- Mas como Adão viveu num tempo em que já conhecíamos o fundamento de várias ciências é bem verdade que não se podia confiar só na memória, mesmo ela sendo bem desenvolvida naquele tempo.
- É o que acredito. E como entendo que o personagem bíblico Adão não foi criado do barro, como o autor do livro de sua história diz, mas que era um homem bem preparado, com conhecimentos de Astronomia, Astrologia, Teologia, História e Administração ele tinha muita necessidade de fazer um registro físico de tudo.
- Sua cabeça tendo sofrido um abalo muito grande, segundo sua ficção, e sua memória estando um bocado danificada, era somente lógico que ele procurasse um outro lugar que guardar seus conhecimentos sem ser sua própria cabeça e tenha inventado a escrita.
- É isto que estou procurando na minha pesquisa arqueológica e na minha literatura.